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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Katia Flora

Notícia

Publicado em 10.06.2018 | 21:51 | Alterado em 24.05.2023 | 14:23

RESUMO

Até mesmo curso para para transmitir tradição é realizado nas cidades da Grande São Paulo

Tempo de leitura: 4 min(s)

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Todos os dias entre 8h e 20h, cerca de 60 pessoas visitam a casa de Ana Maria Lemes, 62, no Parque São Bernardo, na periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

Dona Ana, como é mais conhecida, contabiliza até 1,5 mil moradores por mês que buscam auxílio para algum tipo de doença.

Ana é benzedeira e tem atuado no ABC paulista, onde a procura por esse tipo de auxílio persiste, mesmo com o avanço da ciência no tratamento médico. Na região, até cursos para ensinar a benzer começaram a ser realizados.

O benzimento de Ana dura em média 15 minutos e há pessoas que chegam por volta das 6h para o atendimento, antes de ir para o trabalho – a espera pode durar até 3 horas. Entre os pedidos, há quem se benza antes de uma cirurgia, quem peça a melhora da saúde de um familiar que more longe ou um pedido de emprego.

“Deus me deu esse dom para abençoar pessoas. Tudo precisa de fé e Deus na frente “, diz. “Eu nasci com esse dom para abençoar pessoas. Minha guia é o terço e tudo vem de Deus, sem ele não somos nada.”

Dona Ana é conhecida na região por ser de uma das primeiras famílias do bairro. Ela aprendeu a benzer aos 12 anos por meio de seu pai Antonio da Silva Lemes, morto há 12 anos. Prematura, nasceu de sete meses e foi a terceira filha dos oito que tiveram Antonio e Maria do Carmo Ribeiro Lemes, 91, aposentada conhecida como Dona Cotinha.

“Ela nasceu de um milagre, era miudinha, cabia numa meia de lã”, diz Cotinha, que também ajuda a filha. O benzimento não pode ser cobrado, mas muitos em forma de agradecimento doam um quilo de alimento não perecível.

Dona Cotinha ao lado da filha Ana na sua casa, em São Bernardo do Campo (Kátia Flora/Agência Mural)

A ida a esse tipo de tratamento enfrenta resistências. Uma aposentada de 72 anos pediu para não divulgar seu nome, porque sua família não concordou com a ida dela, por conta da religião.Ela tem erisipela (inflamação nas pernas) e tomou vários medicamentos, sem conseguir amenizar as dores.

“Estou fazendo um tratamento aqui, é a sétima vez que vim me benzer, o médico ficou espantado quando viu minha perna e acreditou que o remédio fez efeito. Melhorou muito, estou bem disposta, recomendo para várias pessoas”, comenta.

BENZEDEIRAS

As benzedeiras dizem ter uma missão na terra. Algumas dividem-se entre o catolicismo e espiritismo, usam água, plantas ou terço. Aba atende em umcômodo repleto de imagens como Nossa Senhora da Aparecida e de Jesus.

Já a dona de casa Marlene da Silva, 71,atende no quintal dos fundos da casa, em um espaço com imagens de umbanda, religião afro-brasileira. Ela chega a receber cerca de 30 pessoas na residência localizadano Planalto, outro bairro de São Bernardo.

Marlene começou a benzer depois que filha com 15 dias de vida tomou a vacina BCG (dada aos recém-nascidos) e ficou oito meses doente.

“Antigamente não tinha médico, a cura era chá de mato, isso há mais de 45 anos”, diz. Ela conta que levou a filha numa benzedeira e, depois de alguns dias, a criança foi curada. A pessoa que benzeu disse que ela tinha o dom de curar.

A partir daí passou a atender crianças e adultos. Para a reza, Marlene usa água e joga o restante em plantas ou em água corrente para todo o mal ir embora.

“Aqui é como um confessionário, já ouvi dizer que é coisa de macumbeiro e não presta. Mas cheguei a receber um casal de pastores de igreja evangélica para benzer”, diz.

Curso já formou mais de 840 pessoas em Santo André e no estado (Kátia Flora/Agência Mural)

CURSO

Moradora de Santo André, também no Grande ABC, a professora Pâmela Silva Souza, 24, começou em 2016 na escola Florescer Bento, um curso para formar benzedeiras.

A atividade é feita em um dia de aula com duração de sete horas, com exercícios práticos.

Segundo suas contas, 840 pessoas já fizeram o curso que possui uma taxa de R$ 80.A quantia não é obrigatória, segundo Pâmela. “Nosso objetivo é colocar benzedor na Terra, então se a pessoa não pode pagar e quer praticar, ela vem e é acolhida com amor e respeito do mesmo jeito”.

Sem local próprio, ela aluga um espaço em Santo André, como clínicas holísticas. Além disso, já deu o curso em outras cidades do interior. Benzedores voluntários também fazem atendimento e ela estima que são 1,7 mil atendimentos por mês.

Para Pâmela, a tradição tem sido retomada. “Benzimento é um descanso e bálsamo para alma, todos somos almas. É uma necessidade que isso viva”.

A terapeuta holística Letícia Mara Caldeira, 44, fez o curso em novembro do ano passado, para aprimorar seu trabalho junto ao reiki, tipo de terapia holística. Casada, mãe de duas filhas, disse que recebeu um chamado espiritual para benzer.

“Essa cultura precisa permanecer forte nas periferias. O benzimento é da cultura negra e as ervas de tribos indígenas e devemos preservar essa ancestralidade”, diz.

Essa reportagem é sobre ‘Coexistir na Diferença’, um dos temas da Usina de Valores, iniciativa que a Agência Mural de Jornalismo das Periferias apoia.

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Katia Flora

Jornalista com experiência em jornalismo online e impresso, tem publicações em diversos veículos, como Uol, The Intercept e é ex-trainee da Folha de S. Paulo no programa para jornalistas negros. Correspondente de São Bernardo do Campo desde 2014.

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