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Acontece na Escola: Há 13 anos, escola de Itaquera desenvolve simulação de Júri Popular

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Por: Karol Coelho

Publicado em 03.12.2018 | 16:43 | Alterado em 27.02.2024 | 16:33

Tempo de leitura: 5 min(s)

Mateus Rossetto
Colaborou João Paulo Brito

Anuncia-se a vitória de uma das salas. A comemoração é grande. O momento, repleto de abraços, sorrisos e muitas fotos, marca o fim do debate de estreia do Projeto Júri. É também a recompensa por meses de preparo e muita tensão entre os alunos da Escola Estadual Fadlo Haidar, em Itaquera, zona leste de São Paulo.

O mês é setembro, dia 18. A realização da já tradicional atividade no colégio, uma simulação pedagógica de júri popular, da qual participam diversas turmas do ensino médio, foi marcada, como de praxe, por muitas emoções e até algumas confusões.

“Macaca!”, grita um dos jovens à adversária. O êxtase de um dos alunos transparece seu racismo. A fala preconceituosa não é recebida pacificamente. Em resposta à violência verbal, a violência física, por parte da estudante ofendida e de suas colegas indignadas. Caso sério que, por pouco, não se torna algo pior.  No mesmo dia do ocorrido, grupos de estudantes se ameaçam em redes sociais e chegam a agendar novas brigas. “Eles começaram, eu não fiz nada. Agora, aguenta”, diz uma das mensagens publicadas por um dos jovens.

Leia a série de reportagens sobre o que Acontece na Escola.

O episódio deste ano exigiu da direção da escola algumas medidas imediatas: o adiamento, por um dia, do Júri; o registro de um boletim de ocorrência; e o afastamento de uma das turmas envolvidas. Em 13 anos de realização ininterrupta do Projeto Júri na Fadlo Haidar, nunca havia ocorrido um caso de violência entre os alunos, tampouco de racismo.

O início

O projeto começou em 2006, a partir da iniciativa do professor Fernando Galvão, que passou a realizar as atividades por conta própria com as turmas para as quais lecionava. Na atividade, Fernando, que não dá mais aulas na escola, dividia os alunos em quatro grupos que tinham a missão de desenvolver argumentos, com diferentes pontos de vista, em defesa de uma mesma temática. Com o passar dos anos, o modelo foi aprimorado até chegar no formato atual. Pensado pela professora de Língua Portuguesa Elizabete Luz, 54, atualmente toda uma classe constrói uma mesma opinião coletiva e desafia outra classe, que representa a posição contrária.

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Aluna faz papel de oficial de Justiça e dá início à sessão (Maria Nilde de Sá Ferreira/Arquivo)

Mas como explica Elizabete, o formato do projeto é apenas um detalhe, mero pretexto para incentivar o diálogo e a tolerância entre os jovens. “Aquilo que nós nos propomos a fazer como exposição é o último caso, é o último pensamento”, conta. “O primeiro pensamento é trazer para a sala de aula um momento de reflexão sobre os assuntos polêmicos”.

Os tais “assuntos polêmicos” citados pela professora Elizabete são temas de relevância social escolhidos para serem debatidos entre os alunos através do projeto. Descriminalização do aborto, legalização da pena de morte, casamento entre pessoas do mesmo gênero e ditadura militar são exemplos de assuntos que foram pautas dos estudantes nas edições anteriores.

Na simulação, alguns alunos interpretam papéis de advogados de acusação e de defesa, outros, atuam como testemunhas. Já o júri popular é composto por professores, inspetores e, como ocorreu neste ano, estudantes de direito ou advogados. Escolhe-se um assunto polêmico para tornar-se réu. Universitários fazem as vezes de juízes, comandam a representação e leem a sentença.

No Brasil, o júri popular existe desde 1822. Sofreu alterações ao longo do tempo, seja no campo em que julgaria ou nos ritos que o compõe, mas nunca foi extinto. É uma instituição consolidada no âmbito jurídico. Nos dias de hoje, ele julga os crimes contra a vida. Isto é: homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e aborto.

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Diretora da Escola Fadlo Haidar fala sobre Projeto Júri antes da sessão (Arquivo)

O formato brasileiro de tribunal de júri está composto sempre por cidadãos que não tenham pendências eleitorais ou judiciais. São escolhidas, aleatoriamente, 25 pessoas e, dentre elas, são delimitadas apenas sete. Os advogados de defesa e o Ministério Público podem, no entanto, recusar até três jurados, cada.

Na versão fictícia da escola Fadlo Haidar, a escolha do júri não tem interferência dos alunos, mas também há regras: professores que coordenam uma determinada turma não podem ser jurados em casos que seus alunos estiverem representando. Além disso, cada juiz e juíza é responsável por julgar uma competência, entre elas, o uso correto da norma culta da língua portuguesa e o conhecimento legislativo.

O júri

Na sessão do dia 21 de setembro, realizada após o adiamento, um tema inédito foi escolhido para debate: a flexibilidade à posse e ao porte de armas. O assunto, como nas demais edições, é polêmico e atual.

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Grupo de alunas da defensoria presta último apoio antes da apresentação (Regiane Lima Santos Coutinho/Arquivo)

Do lado da defensoria, o argumento é voltado para a legítima defesa e o crescimento contínuo da criminalidade. Os alunos-advogados representantes dessa posição trazem como testemunhas duas vítimas de fatalidades criminosas e uma agente da Polícia Federal. A apresentação conta com o testemunho emocionado de uma mãe que perdeu sua filha em decorrência de um assalto à mão armada.

A promotoria, por sua vez, prega a manutenção da rigidez ao acesso a armas para o cidadão comum. Para isso, argumenta sobre a responsabilidade de o Estado em prover segurança pública de qualidade a toda a sociedade e coloca em dúvida os reais interesses – econômicos, por certo – envolvidos na revogação do Estatuto do Desarmamento. Entre os testemunhos ouvidos, destaque para o depoimento de um menor condenado por disparar contra seus colegas em uma sala de aula.

Clima tenso. Todos nervosos. A ordem da sessão, que deveria se iniciar pela leitura da tese, seguida por testemunhos, réplica, intervalo e, por fim, a tréplica, com limite de tempo devidamente cronometrado; por decisão unilateral de um dos juízes, foi modificada para tese, testemunhos, intervalo, réplica e, para surpresa geral, sabatina.

Na sabatina, um advogado de cada turma responde por questões formuladas pela parte contrária. É um momento crucial para o convencimento (ou não) do júri. O momento exige calma, mas o nervosismo daqueles escolhidos para responder é grande. O suor escorre pelo rosto. Quando mais se precisa a voz hesita. Gagueja. Mas, para o alívio geral, estes fraquejos se mostram detalhes ínfimos diante da brilhante defesa realizada.

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Advogado da defensoria interroga sua testemunha, uma refugiada (Arquivo)

Fim da sessão. Os jurados se retiram para deliberar o ganhador. É lida a sentença. Ao que parece, se depender do júri da Escola Fadlo Aidar, o Estatuto do Desarmamento terá vida longa. Vitória da promotoria! Neste ano, assim como aconteceu no anterior, todas as promotorias saíram vencedoras.

O fim

Ainda é setembro, mas agora o dia é 24. As apresentações se encerram e o Projeto Júri acaba. Espera-se que o objetivo tenha se cumprido, não só o da simulação bem-feita, mas que os alunos tenham aprendido com a experiência.

O conhecimento é o ponto mais importante do projeto, por isso nos meses que precedem a realização do Júri, a escola promove palestras com profissionais das mais diversas áreas do conhecimento fora da grade escolar. Neste ano, os alunos receberam auxílio e instrução do psicólogo Cristiano Vasconcelos. “A impressão que eu tive, é que eles estavam bastante envolvidos. As questões [que os alunos fizeram] não eram só sobre o Direito, eram sobre Psicologia”, explica.

O projeto traz benefícios aos alunos, e sofre modificações para melhor adequá-lo às necessidades deles ao longo do tempo. Essa simulação é vista com bons olhos, por isso professores de outros colégios, como as escolas estaduais Charles de Gaulle e Fernando Pessoa, já começaram a articular formas de aplicá-la.

Mateus Rossetto é estudante da 3ª série do ensino médio na escola estadual Fadlo Haidar
João Paulo Brito é correspondente de Vila Nova Cachoeirinha

Essa reportagem foi produzida por um participante do programa de bolsa de jornalismo Acontece na Escola da Agência Mural, no qual estudantes do ensino médio de escolas públicas da região metropolitana de São Paulo produzem conteúdo jornalístico sobre temas do cotidiano escolar. A iniciativa integra o projeto Mural nas Escolas.

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Karol Coelho

É jornalista, cofundadora da Agência Mural e correspondente do Campo Limpo desde 2010. Colaborou com a criação da Escola Comunitária de Comunicação da Escola de Notícias, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Escreve poesias e tem um livro chamado "Estado Atmosférico", que produziu de maneira independente. Na Mural, também apresentou o Rolê Na Quebrada e o PodePá! e foi editora de projetos especiais.

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