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Artistas buscam formas para aprender e criar por conta própria

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Por Redação | 19.10.2018

Publicado em 19.10.2018 | 17:38 | Alterado em 27.02.2024 | 16:10

RESUMO

Pelas periferias de São Paulo, moradores que vivem da arte têm buscado meios para conseguir renda por meio do trabalho e contam as dificuldades

Tempo de leitura: 6 min(s)

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Este artigo foi publicado originalmente na revista Pueblos, da Espanha, em parceria com a Agência Mural. 

O menino era curioso. Quando o circo chegava na cidade, corria para ver. Por dentro da lona, presenciava as mesmas cenas que o encantavam na tela grande do cinema. De tanto entrar por baixo, sem pagar entrada, foi gostando cada vez mais de circo e de cinema. Então começou a fazer teatro para chegar mais perto do que queria.

Milton Santos Júnior, 50, nasceu em Brumado, estado da Bahia, no nordeste brasileiro. Ele migrou para São Paulo atrás da oportunidade de fazer filmes. Na década de 1980, se instalou em São Bernardo do Campo, região metropolitana. Ali, conseguiu a primeira câmera e começou a produzir os primeiros filmes.  “Bola Dourada” foi a primeira produção, sobre o futebol jogado pelo filho e pelos vizinhos nas redondezas de casa.

Como Júnior, as periferias de São Paulo acomodam artistas, envolvidos em diversas manifestações artísticas, que não puderam acessar o ensino superior para aprender mais, mas ainda assim se destacam por suas criações.

Precisamos desconstruir o conceito de aprendizado dos saberes culturais”, afirma Lívia Silva, 31, jornalista e mestre em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo. “Nós, periféricos e marginalizados, possuímos conhecimentos, vindos de nossas experiências, com outras oportunidades e recursos, o que não significa que sejam piores, mas que não são valorizados e, muitas vezes, são menosprezados”.

Dêssa Souza, 37, é produtora cultural e atua com coletivos artísticos do Campo Limpo, na zona sul da cidade de São Paulo. Formada no curso técnico de edificações, ela não encontrou-se em um curso universitário. Mas, com vivências práticas no teatro e da música, experiência com marcenaria e participação em diversos cursos livres, ela compartilha o que sabe em um curso de produção que ela mesma criou e realiza no Espaço Cultural CITA (Cantinho de Integração de Todas as Artes), onde também colabora com a gestão.

A primeira vez que Dêssa Souza, 37, disse “quero ser produtora” foi quando seu irmão começou a estudar na Universidade Livre de Música de São Paulo. Ele se formou e criou um trio instrumental, mas eles tocavam apenas em casa. “Eu falei: ‘vocês deveriam tocar em algum lugar’. Então descolei um bar para eles se apresentarem no centro”, conta. Esse mesmo bar foi onde ela começou a se apresentar cantando, em 2006. “Comecei por ver que já existia uma produção muito louca e fiquei com vontade de articular coisas”.

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Sempre faltava espaços para exercitar a arte, diz Daniel Souza, artista de Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo (Lucas Veloso/Agência Mural)

Antes disso, ela não tinha noção de que o que fazia chamava-se ‘produção’. Quando morava em Carapicuíba, cidade vizinha de São Paulo, Dêssa era envolvida com a cena de rock. “Eu estava inserida nesse miolo, com um monte de amigo, de artista bom, e aí comecei a inventar formas dessa galera fazer coisas. Eu me inseri no que já acontecia, em festivais de rua e de punk rock”, explica.

Em 2010, Dêssa queria prestar vestibular para gestão cultural e na época sabia, apenas, de um curso no Rio de Janeiro. Sua primeira filha ainda era bebê, o que a impedia de mudar de estado. Então, ela ficou sabendo de uma escola de teatro que abriria uma turma no Campo Limpo.

Fui estudar teatro para colocar seus elementos no palco da música, mas falei que queria aprender a fazer produção executiva, edital, essas coisas”, relembra. Envolvendo-se com a produção teatral, ela foi, cada vez mais, encontrando um jeito de se desenvolver. “Falei ‘eu quero fazer o trampo porque aí eu vou aprender fazendo’”.

Para Lívia, a universidade ainda é importante para legitimar a produção artística das periferias “Às vezes, quando não há essa legitimação, a arte é considerada menor, amadora, o que muitas vezes recai no conceito de ‘cultura popular’”, explica.

Ela também reconhece que o acesso à escolarização impacta na construção de repertório das pessoas e em suas produções.

“É importante defender o acesso à educação, aos bens culturais e também a práticas culturais diversas”, afirma Lívia Lima.

Neste ano, o ProUni (Programa Universidade para Todos), completa 14 anos. A iniciativa foi criada para aumentar as chances de pessoas de baixa renda entrarem no ensino superior. De acordo com dados do MEC (Ministério da Educação), nos dez primeiros anos de existência, o ProUni formou 400 mil profissionais, sendo que metade dos beneficiados eram negros.

O levantamento vai de encontro com a questão racial brasileira, onde mais da metade (54%) da população se autodeclara como preta e parda, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Negro e morador de Cidade Ademar, Daniel Santana de Souza, 25, foi um dos beneficiários do programa social. Ele cursa Design. Antes de entrar na faculdade, o jovem já desenvolvia trabalhos e projetos de artes visuais, com materiais mais baratos, como vidro, papéis de revista e esmalte.

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Dessa Souza, productora cultural do Campo Limpo, em São Paulo (Francielle Meireles)

A falta de espaços culturais na região foi uma das dificuldades enfrentadas por Souza. De acordo com dados do Observatório Cidadão, da Rede Nossa São Paulo, seu bairro não possui nenhum ambiente assim mantido pelo poder público, ainda que tenha mais de 400 mil habitantes.

“Trabalhava desde a adolescência, e comprava o máximo de materiais com minha renda. Tinha um amigo que fazia junto, dividimos as coisas para economizar e guardávamos em um quarto da casa da avó dele. Sempre faltava espaços para exercitar a arte”, relembra.

Já para o cineasta Milton Júnior, a maior dificuldade era encontrar cenários para suas gravações. Ele procurava espaços públicos, mas a burocracia para obter autorizações atrapalhava seus planos. A alternativa foi a negociação com amigos, parentes e alguns contatos. “Como eu não tinha dinheiro, sempre fazia ‘roteiros de periferia’”, define.

Os atores de suas produções são, em sua maioria, vizinhos e conhecidos. Depois de realizar vários projetos, a coisa mudou. Até 2012, o cineasta não tinha recebido nenhum incentivo público para manter suas criações. A chegada dos recursos de um programa municipal de incentivo o permitiu comprar equipamentos profissionais, como iluminação e rebatedores de luz.

“Vila São Pedro e sua Gente” foi a primeira produção feita com o investimento que recebeu. O documentário conta a história de moradores da maior favela da cidade de São Bernardo do Campo.

Com 28 filmes, Milton tem como objetivo exibir  seus títulos em uma das grandes redes de cinema, mas ainda não teve sucesso. “Eles cobram caro pelo aluguel da sala e oferecem horários ruins. Quem vai ao cinema ao meio-dia?”, questiona.

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Até hoje, Daniel continua suas experimentações artísticas, tentando técnicas para compor suas obras. “Alguém que escreve, desenha e está na periferia não encontra gente que vê valor nisso, isso desestimula”, afirma. Para ele, apenas quem nasceu na periferia consegue enxergar os avanços dela. “Não são só as coisas ruins que descrevem a gente”.

Dêssa Souza continua a participar de cursos de produção, escrita de projetos e empreendedorismo. Enquanto isso, divide o que sabe com o coletivo Camomila, de mulheres artistas e empreendedoras. “Consigo me enxergar feliz quando eu tenho ideias e projetos e ainda ganho dinheiro, não para ficar rica, mas para pagar o aluguel. Quero mostrar que outras mulheres também podem fazer, mas às vezes, elas não enxergam”.

DESCENTRALIZAÇÃO DO ORÇAMENTO

Sem romantizar a falta de recursos e espaços para desenvolver plenamente a produção cultural nas periferias de São Paulo, os trabalhos de quem enxerga o poder da arte tem ensinado atores das mais variadas linguagens a encontrar, construir e fomentar espaços de aprendizado.

No Brasil, um dos principais meios de financiar a cultura é a Lei Rouanet, que também criou o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Por meio dela, empresas e pessoas físicas podem destinar parte do Imposto de Renda ao fomento cultural. Assim, o Estado abre mão de parte da arrecadação de impostos, que são direcionados para a cultura.

Segundo o Governo Federal, em 2018 foram aprovadas 96 propostas, que podem captar recursos de até R$ 85 milhões por meio de renúncia fiscal.

Por outro lado, desde 2013, na cidade de São Paulo, o Movimento Cultural das Periferias está em busca da descentralização da verba da secretaria de Cultura da capital paulista. Em três anos, o movimento realizou articulações, encontro com vereadores, debates em comissões parlamentares e a elaboração do projeto de lei de Fomento à Cultura das Periferias. A lei foi sancionada em 2016 e disponibilizou, no primeiro ano, R$ 9 milhões para cerca de 30 coletivos. O edital deste ano previu um valor menor, de R$ 7,5 mi.

O Movimento luta para que que os grupos culturais tenham mais participação nas decisões da cidade e para fiscalizar o cumprimento da lei. “A discussão sobre o orçamento da cultura é tão complexa quanto todas as demais em nosso sistema capitalista e as minorias, que são maioria, acabam recebendo muito menos em comparação a grandes empresas e instituições, que conseguem captar muito mais dinheiro público do que os coletivos periféricos”, resume Livia.

A pesquisadora acredita que “devemos defender a cultura como uma das principais vertentes da experiência humana. É um direito de todos, e todos devem ter acesso, em todas as suas etapas, desde a concepção, criação, produção, até aos seus produtos finais, para apreciação, lazer, e, inclusive, o ócio”, complementa.

Karol Coelho e Lucas Veloso são correspondentes de Campo Limpo e de Guaianases

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