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Roteirista no Porta dos Fundos se viu entre o sonho e a sobrevivência em Cidade Tiradentes

Por: Giacomo Vicenzo

Atrás dos óculos redondos está Jhonatan Marques, 25. De fala tranquila e sem pressa, o morador de Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, viralizou nas últimas semanas nas redes sociais com um depoimento sobre realizar um sonho: se tornar roteirista de comédia. 

Há dois meses, ele faz parte da produtora Porta dos Fundos. Na mensagem, o jovem falava sobre as sequências de vezes em que não conseguiu alcançar os objetivos, o que levou a desenvolver uma depressão e pensamentos suicidas. 

Minha vida toda eu sempre fui do “quase”: quase consegui começar a faculdade, quase consegui aquele trampo, quase consegui fazer aquele show”, conta. “E hoje é muito estranho eu falar “eu consegui”. 

Marques mora, estudou e se criou no bairro de Cidade Tiradentes. Aluno da rede pública, ele lembra que começou a se interessar pela comédia no final do ensino médio.

“Em 2012, conheci o Porta dos Fundos, comecei a estudar comédia, ler livro de stand up. Enquanto meus amigos liam Brás Cubas para o vestibular, eu estava lendo livro de como fazer comédia”, comenta Jhonatan.

O estudo do ensino médio foi feito na ETEC (Escola Técnica Estadual) de seu bairro e ele lembra que foi nesse período, quando era estimulado pelas professoras a fazer apresentações, que descobriu a vocação para o humor. “Cheguei até criar um canal de humor para ETEC, mas quando saí deixou de ser alimentado e foi excluído”, comenta.

SONHAR OU SOBREVIVER

No começo dos anos 2000, o trecho ‘sonhar ou sobreviver’, da faixa a ‘Vida é Desafio’ do grupo de rap Racionais Mc’s era lançado. Quase 10 anos depois, o dilema entre conseguir realizar um sonho e garantir a sobrevivência ilustra as escolhas que Marques teve de fazer. 

“Corra atrás do seu sonho custe o que custar. Quem nunca ouviu isso?”, questiona. Moro eu e minha mãe. Não posso largar tudo e correr atrás do meu sonho, se eu cair no buraco, cai todo mundo comigo”, desabafa Jhonatan.

Com pai ausente, criado somente pela mãe, a renda dos primeiros trabalhos que conseguiu fazia diferença para manter o seu lar. “Com 17 anos comecei a fazer stand up, mas tive que parar. O trampo sustentava minha casa, tive que ir para o trabalho”, lembra ele que na época trabalhava na área de telemarketing.

Mais tarde, trabalhando na área de TI (Tecnologia da Informação), Marques voltou aos palcos, mas as idas e vindas do ramo dificultavam a progressão na área que tanto sonhava.

“Eu tinha que participar do microfone aberto [momento em que comediantes iniciantes podem participar] que rolava nas casas de show no centro de São Paulo. Tinha que ir depois do trabalho e trabalhar sem dormir no outro dia”, lembra ele.

Morador de Cidade Tiradentes, ele abriu mão de bolsas de estudos por conta da distância e de ajudar em casa @Arquivo Pessoal

Mesmo sem nem sempre receber nesses eventos, ou recebendo pouco, Jhonatan já passou noites na rua esperando que o Metrô abrisse de novo e ele voltasse cerca de 35 km de volta para casa para tomar banho e ir trabalhar. “Não podia nem dormir um pouco, pois sabia que iria perder o ponto”, lembra ele.

As noites em claro lhe garantiram prêmios em diversos eventos do circuito. Eram premiações restritas ao universo, mas que renderam a chance de abrir a eventos maiores de stand up.

“O quase é muito presente para a gente, principalmente quando você é alguém preto e de periferia. Você quase conseguiu aquele emprego, se não fosse pelos 30 quilômetros de distância. O ‘quase’ é muito real na vida de todo mundo aqui”, 

Com o tempo, Marques começou a fazer algumas apresentações em bares de bairros próximos de casa, nesses começou a ganhar algum dinheiro, mas que não era nem de perto o suficiente para que pudesse deixar o trabalho.

Com idas e voltas do stand up, Jhonatan estava longe de consolidar uma carreira na comédia. “Estava me contentando que era esse o meu trabalho, minha vida. Trabalhava numa empresa, bem ruim, eu odeio informática. Fazia porque tinha que sobreviver”, lembra. O período marcou uma fase em que ele adquiriu depressão e síndrome do pânico. 

Em meados de 2018, Marques conheceu o comediante Yuri Marçal, que o apresentou para uma série de contatos, entre eles o diretor e roteirista Marton Olympio; Autor da última temporada da série’Cidade dos Homens’, Olympio o indicou para um dos produtores do canal de comédia Parafernalha, fundado pelo influenciador e youtuber Felipe Neto.”

Ainda trabalhando na área de suporte técnico, ele começou a escrever roteiros de forma freelancer para o canal. Precisava de um tempo livre e de um computador em que pudesse ficar longe da chefia para poder escrever as palavras que se tornaram o primeiro roteiro aprovado rodando em um vídeo na internet.

“Estava no trabalho, quando recebi o e-mail que o roteiro tinha sido aprovado e mandaram uma prévia para mim. Corri no banheiro com o celular e desabei no choro”, lembra Marques.

Roteirista também participou de stand up @Arquivo Pessoal

No começo deste ano, Jhonatan foi demitido. As preocupações com as contas vieram, mas ele continuava escrevendo para o canal Parafernalha e também podia contar com o seguro desemprego. “Comecei a fazer vídeos para o Instagram. Mais uma vez o Yuri Marçal ajudou a divulgar em uma campanha para promover humoristas negros”, lembra ele.

A campanha chamou a atenção do canal Porta dos Fundos e ele começou a enviar alguns roteiros como freelance. “Depois de um mês, eles me convidaram para ser fixo na produtora”.

Marques revela que é a primeira vez que acorda às segundas-feiras disposto e animado com o trabalho.

A rotina passou das telas de computadores que acumulavam chamadas de suporte técnico para os roteiros que desenvolve de casa neste período de pandemia de Covid-19. “Para mim ainda parece que é um sonho. Demorei a falar isso para as pessoas, porque eu custava acreditar que finalmente eu cheguei em algum lugar. É uma sensação de alívio, sabe?”, revela.

“A gente é construído para se sentir um pouco mais abaixo do que a gente realmente é. Somos colocados para baixo todo dia e isso faz a gente murchar cada vez mais. Mas temos que lutar contra isso de alguma forma”, comenta.

Nos roteiros, diz que trabalha com foco no dia a dia e na vida de pessoas que não tem o avião como ambiente comum. Quer contribuir com a representatividade.

“A melhor ferramenta do humor é apontar quem precisa ser apontado como alvo, que é quem está oprimindo. Nesse sentido, usar o humor como uma arma é mais benéfico e nunca tirar sarro de quem já está sendo perseguido pela sociedade”, comenta.

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