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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Humberto do Lago Müller

Crônica

Publicado em 30.11.2018 | 18:41 | Alterado em 22.03.2022 | 13:32

RESUMO

Hospital psiquiátrico que completa 120 anos em 2018 tornou as cidades sinônimo de loucura; o município mudou de nome após a descoberta de abusos no local

Tempo de leitura: 6 min(s)

“Juquery, quem é louco desce aqui”. A frase que ainda ecoa na memória e no imaginário de boa parte dos moradores de Franco da Rocha e das cidades vizinhas na Grande São Paulo era dita quando os trens da ferrovia Santos-Jundiaí cruzavam a estação da região.

Esse rótulo começou quando o médico Francisco Franco da Rocha resolveu instalar ali a colônia psiquiátrica em 1898.

A região, até então agrícola e afastada dos grandes centros, era considerada o local ideal para abrigar os chamados “loucos”: todos os que a sociedade acreditava serem inaptos à convivência cotidiana. Dentre estes, inúmeros casos de injustiça ou desconhecimento.

O complexo foi por décadas um dos maiores do país. Hoje, muitos moradores da região têm ou tiveram parentes que trabalharam no local, mas, no início, a colônia de Juquery era auto suficiente. Contava com instalações, moradias, plantações e cemitério para enterrar os pacientes que morreram no local.

Com o passar das décadas e com a morte de Franco da Rocha em 1933, o Juquery se transformou de local de referência para símbolo de degradação. Nos anos 1960, chegou a abrigar mais de 16 mil pacientes ao mesmo tempo. Ficou famoso nacionalmente tanto pelo bem quanto pelo mal.

Eu cresci ouvindo essas histórias. Muitas citavam como familiares simplesmente abandonavam parentes por lá, alguns ainda crianças, mesmo sem saber ao certo se estes tinham de fato alguma doença mental. Para todos nós que crescemos ao norte da Grande São Paulo, Juquery sempre foi sinônimo de medo, desespero e mistério.

O nome, no entanto, tem uma origem mais inocente. Juquery seria uma pequena planta conhecida como “dormideira”, utilizada pelos indígenas e que “encolhe” suas folhas quando tocada.

O tal “Yu-kery” denominou o rio, que nasce e corta toda a região e cujas margens tinham muitas plantas dormideiras. Rio, aliás, que hoje faz parte do sistema Cantareira de abastecimento, e foi constantemente motivo de enchentes na região, outra memória presente na minha vida e na do povo de Franco da Rocha.

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Com projeto de Ramos de Azevedo, o complexo hospitalar do Juquery completou 120 anos em 2018. Na torre do relógio lê-se em latim: “Esses ponteiros, como a vida, fluem, ainda que pareçam parados” (Humberto Muller/Agência Mural)

O rio também deu nome ao morro, ao lado do qual surgiu o que viria a se tornar o município do Juquery, hoje conhecido como Mairiporã. Na época (a partir de 1889), toda a região formava uma única cidade, sendo que a estação ficava a quase 25 km da sede do município.

Franco da Rocha (e sua estação) então se emancipou do Juquery em 30 de novembro de 1944, como homenagem ao criador do hospital. Caieiras e Francisco Morato se emanciparam posteriormente.

O município de Juquery ainda existiria por alguns anos.Foi só em 1948 que, por meio de uma votação, ele foi renomeado para Mairiporã.

O principal motivo da mudança? Com a decadência do hospital, a associação do nome foi cada vez mais vista de maneira negativa pelos habitantes. Os moradores então fizeram um concurso para rebatizar o local e venceu a ideia do jornalista Araújo Jorge.

O significado divide moradores: alguns dizem que Mairiporã significa “cidade bonita”, outros que seria “águas bonitas de Maíra” (uma deusa indígena).

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LOUCURA PELA CIDADANIA

A fama do Juquery como local de loucura e sofrimento chegava muito além das fronteiras da cidade e a situação gerava piadas e constrangimentos. Conta-se até hoje uma frase atribuída ao então deputado estadual Ulysses Guimarães:“Juquery, terra de loucos. Loucos por cidadania”.O município trocou de nome, se distanciando do passado que lhe “tirava” a cidadania.

Para nós, o nome ainda é algo próximo e presente, mas ao mesmo tempo tão distante. Eu cresci na última curva do rio Juquery antes dele se tornar represa, convivi de perto com suas águas límpidas cruzando a serra, mas também acompanhei as cheias e o estigma que o nome carrega até os dias atuais.

Em Mairiporã, o nome Juquery relacionado ao hospital foi sumindo com o passar dos anos e a memória de ter sua cidade relacionada a um local de loucura foi ficando no passado.

Hoje, a relação dos moradores de Mairiporã é maior com o rio, e com o parque estadual da cidade vizinha, importante refúgio do cerrado na região, do que com o hospital.

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O Juquery, que já chegou a abrigar milhares de internos simultaneamente, hoje tem corredores vazios (Humberto Muller/Agência Mural)

No final dos anos 1990, meus pais passaram a trabalhar em Franco da Rocha, e eu comecei a conviver ainda mais com a cidade e com os belos edifícios de Ramos de Azevedo, sempre escondidos por entre a mata na beira da estrada.

O mistério que me atraía quando criança se transformou cada vez mais em curiosidade. Por duas vezes tentei visitá-lo.Em ambas fui “tocado” para fora por seguranças, pois aparentemente não se podia sequer fotografar o patrimônio. Mesmo assim fiz muitas fotos, algumas estão desde aquela época em páginas da internet, como as da Wikipédia.

DESTRUIÇÃO DA MEMÓRIA

Em dezembro de 2005, um clarão na noite podia ser visto de longe na estrada durante a volta para casa. Ao ligar a TV soube então do que se tratava, um grande incêndio destruía o prédio da administração e da biblioteca do Juquery. O fogo levou aodesaparecimento da história de milhares de pessoas que foram pacientes do local.

Hoje, as paredes do imponente edifício ainda estão de pé, mas o que se perdeu ali em documentos nunca poderá ser recuperado.

Lembro de me questionar como algo tão importante poderia ser negligenciado a ponto de se deixar queimar assim. Infelizmente, sei que no Brasil a história nos mostra um caminho de abandono do patrimônio histórico em todas as esferas, muitas vezes até criminoso.

Por anos continuei acompanhando de perto promessas para a área, como a criação de uma universidade Federal ou novas instalações de saúde, ou mesmo o fechamento de vez. Desde 2011, um grande hospital estadual passou a fazer parte do complexo, mas o resto do Juquery permaneceu inalterado e isolado, com parte das estruturas ainda se degradando lentamente.

NOVOS ARES

Sorte melhor teve um espaço vizinho, o então Museu Osório César, que existiu até 2006, na casa que abrigou o doutor de mesmo nome.

Osório Thaumaturgo César acreditava na arte para o tratamento dos pacientes. O acervo que foi compilado de obras criadas pelos internos até hoje é tido como um dos mais importantes do tipo. Osório César foi casado por alguns anos com Tarsila do Amaral, e seu trabalho artístico com os internos do Juquery chegou a ser resenhado por Sigmund Freud.

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Casa de Osório César, que já abrigou um museu e hoje encontra-se em restauração (Humberto Muller/Agência Mural)

O principal patrimônio histórico da região norte da Grande SP tenta renascer sem esquecer a própria história. A antiga casa de Osório César encontra-se em restauração, ainda sem previsão de reabertura para a população.

Em 2015, parte do acervo de quadros que havia sido doado pelo próprio Osório ao Museu de Arte de São Paulo (MASP) foi tema de uma exposição. É um sinal de novos tempos, tempos de menos medo e mais conhecimento.

O Juquery precisa de novos ares e a boa notícia é que alguns já sopram por lá. As iniciativas culturais têm crescido, em 2016 apresentações de teatro foram feitas no espaço. A peça apresentada, da companhia de teatro Girandolá, chama-se “Juquery – Memórias de Quase Vidas” e conta como a história da região se relaciona com o hospital através de seus pacientes e funcionários. Histórias pesadas, mas necessárias.

Em setembro de 2018, o local recebeu um festival de artes chamado “Soy loco por ti, Juquery”, produzido pela Trapézio produções culturais, com realização do ProAc (Programa de Ação Cultural), da prefeitura municipal de Franco da Rocha e apoio da administração do complexo.

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Festival “Soy loco por ti Juquery” atraiu centenas de pessoas para exposições e atrações culturais dentro dos antigos edifícios (Humberto Muller/Agência Mural)

Pela primeira vez pude visitar o local e fotografar livremente. Não só fomos liberados para andar pelo espaço como ele ainda recebeu exposições e intervenções artísticas. Além de atrações como música e teatro, um contraste tão grande quanto necessário com o clima opressor das paredes descascadas.

O público do evento formava fila para entrar durante o domingo nublado. E a reapresentação da peça do Girandolá teve os 40 lugares esgotados quase uma hora antes da apresentação.

Entre as pessoas, inclusive muitas famílias e moradores da cidade, que tinham no rosto um olhar de curiosidade, de quem conhece algo tão familiar pela primeira vez.

Com o tempo e o isolamento, o Juquery foi sendo deslocado novamente das cidades, vivendo cada vez mais em um mundo à parte. Tenho esperanças de que esse “muro” que se criou com o passar das décadas possa diminuir, principalmente para a população das periferias da região, sempre distantes de boas iniciativas culturais que apresentem conceitos de memória e pertencimento.

O Juquery, com tanta cultura e potencial, tenta criar novos laços com as cidades que ajudou a crescer e com o povo que nasceu ou que as adotou como lar.

Somos um pouco mais loucos pelo Juquery, loucos por conhecimento, loucos por um caminho mais inclusivo e para que um local com tanta história saia do abandono e tenha novamente um papel central na vida de todos nós. Desta vez, de maneira positiva.

Humberto Muller é correspondente de Mairiporã
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Humberto do Lago Müller

Apaixonado por animais, desenho, fotografia, natureza. Praticante de turismo sem roteiros, conhecedor de escadões e mirantes. É logo ali! Correspondente de Mairiporã desde 2013.

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