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Agência de Jornalismo das periferias

Magno Borges/Agência Mural

Por: Tamiris Gomes

Notícia

Publicado em 06.03.2023 | 15:48 | Alterado em 07.03.2023 | 16:31

Tempo de leitura: 6 min(s)

Abri a agenda e cliquei no horário de nossa chamada de vídeo, às 20h de uma sexta-feira. Horas antes comecei a me preparar, escrever as perguntas e montar algum tipo de roteiro que se faz ao entrevistar alguém importante. Mas ela, Déia Freitas, dona da voz inconfundível por trás do podcast Não Inviabilize, não apareceu.

Minutos depois, Déia estava pedindo desculpas no WhatsApp e se colocou à disposição para falarmos outro dia – estava doente e mesmo assim seria impossível ficar chateada com ela. Remarcamos e, quando cliquei no Google Meet para esse evento, já estava mais relaxada. Pontualmente, ela se conectou e recebi aquele sorriso.

Moradora de Santo André, município do ABC Paulista, na Grande São Paulo, Déia demonstra com a própria experiência que nem tudo na vida pode ser roteirizado. Os caminhos que escolhemos podem nos levar a outros inimagináveis, um “Picolé de limão”, de repente, pode virar um “Amor nas redes” ou o contrário.

Déia criou o podcast Não Inviabilize em 2020, que hoje conta com 97 milhões de reproduções @Arquivo pessoal

Déia tem 47 anos, é filha única e perdeu os pais quando era jovem: o pai aos 12 anos e a mãe aos 16. Foi criada pelos tios e brincava com a prima – a Janaína – e os vizinhos, nas redondezas da favela da Tamarutaca. Ela conta que nessa época já percebia o interesse por contar histórias.

“Eu era uma criança danada, viu? Era uma peste [risos]. Nunca fui evangélica, mas ia nas férias na Igreja do Nazareno. Gostava de ouvir histórias da Bíblia e depois sair contando. Sempre gostei dessa coisa de contar histórias e de aventuras, como se estivesse num filme”, detalha.

A primeira da família a entrar na universidade

Assim ela cresceu, tendo ainda que se “virar” para se sustentar. Entrar numa universidade estava bem distante dos planos, não fazia parte da realidade em que vivia. “Só entrei na faculdade porque fui trabalhar nela”, conta.

Foi então a primeira da família a fazer um curso do ensino superior e se formou em psicologia. “O curso tinha que ter naquela faculdade [na época, faculdade Senador Fláquer, que hoje virou Anhanguera], para ter a bolsa.”

“Nunca tive esse sonho de pensar em fazer uma faculdade. Dentro da nossa realidade, do que a gente vivia ali em questões financeiras, não achávamos que fosse possível”, diz. Na época, ganhava R$ 330 como auxiliar de escritório na faculdade, e o curso custava quase o dobro.

“Era uma bolsa integral. Se não fosse, eu não teria acesso. Na minha época de escola, não se falava que a gente podia prestar vestibular para a USP [Universidade de São Paulo], por exemplo. Nem sabia que a USP existia”, diz Déia, sobre os acessos que não teve durante o ensino médio em uma escola pública de Santo André.

Formada, ela não atuou na área. “O problema é que eu não podia sair do meu emprego para fazer um estágio, porque tinha minhas contas para pagar. Não tinha pai, não tinha mãe, e tinha que me manter. Isso foi um baque para mim”, desabafa.

Depois disso, passou a trabalhar no terceiro setor, em seguida na área da moda e, por fim, com podcast em 2020. Aí surgiu o canal Não Inviabilize, “um espaço de contos e crônicas, um laboratório de histórias reais”, comandado por ela e um time de mais sete pessoas.

Podcast Não Inviabilize tem quadros como “Picolé de limão” e “Amor nas redes” @Arquivo pessoal

Antes de criar o podcast, a comunicadora já recebia histórias no Twitter. “Uma moça viu que eu era psicóloga e me mandou uma DM [mensagem direta] contando uma história querendo um conselho”, conta.

“Falei para ela: ‘isso não é o papel do psicólogo, mas posso jogar aqui na timeline e você colhe as respostas’. E depois disso comecei a receber muitas histórias para fazer a mesma coisa.”

Priscila Armani, uma amiga de Déia, observou o que vinha acontecendo e lançou a ideia de um podcast. Mas, no início, ela relutava e contava as histórias apenas no Telegram, em áudio, durante um ano. Quando finalmente decidiu criar um podcast, de fato, veio a pandemia da Covid-19. “Então comecei a gravar em casa e não parei mais.”

Histórias na pandemia

Em 2020, ano mais intenso da pandemia e com largos períodos de quarentena, a “companhia diária” de Déia, em histórias contadas de forma bem-humorada e humanizada, serviram como analgésico para quem estivesse sozinho e com medo naquele momento.

“Criei uma responsabilidade por pessoas que nem conhecia, recebia muitos e-mails de gente com medo também. Até hoje recebo muito feedback positivo de pessoas que colocavam [para ouvir] uma história e se sentiam melhores. Isso é muito bacana”

Por outro lado, é uma responsabilidade grande para uma pessoa só. Ao mesmo tempo que havia muita receptividade, Déia conta do aspecto negativo proporcionado pelo sucesso do podcast – que contabiliza mais de 97 milhões de reproduções.

“Às vezes as pessoas não gostam de uma história e elas me xingam. Acho que, por causa da proximidade da voz, algumas pessoas não entendem os limites. Mas na maioria dos casos é de boa, as pessoas são bem receptivas.”

Ela avalia que lida bem com haters (quem consegue odiá-la, gente?!), mas também não leva desaforo para casa.

“Quando tem muita gente prestando atenção no que você está fazendo é óbvio que a hora que você escorregar alguém vai te xingar, vai te apontar o dedo. Não consigo ter uma postura mais blasé. Na internet, se alguém me xinga eu xingo de volta.”

A maneira como a podcaster narra os causos é parte da identidade do Não Inviabilize, justamente porque ela não faz questão alguma da neutralidade. Opina quando tem que opinar e se coloca contra nitidamente.

“Você vê um puta absurdo daqueles, vai contar como se nada estivesse acontecendo? Não dá! Os contadores acabam se envolvendo mesmo”

Outro ponto da técnica dela é “militar escondido”, trazendo histórias diversas, temas importantes, mas de forma sutil.

“Por exemplo, você vai ver uma história de amor entre dois homens, duas mulheres, que eu não estou ali falando ‘homofobia, não’, mas estou mostrando como pode ser bonito, né? Ou você foca no golpe, na treta [e não na sexualidade das pessoas envolvidas]”, explica.

“Se de repente você coloca a palavra feminismo, gordofobia ou racismo, você não consegue acessar algumas pessoas. Isso também é técnica de roteiro, do que vai ser destacado naquela história.”

Déia Freitas é psicóloga, podcaster, roteirista, escritora e contadora de histórias. É também ativista da causa animal, preocupada com o meio ambiente e envolvida em projetos sociais.

Racismo

Déia se propõe a misturar temas como esses nos conteúdos narrados porque já viveu situações lamentáveis de racismo. Uma delas ocorreu no Instagram do Não Inviabilize.

“Quando postei a primeira foto, muita gente escreveu ‘achei que você fosse loira’. Foi péssimo para mim. Fiquei com ódio. Sempre acham que, por trás de um trabalho como o meu, tem uma pessoa branca”

Apesar disso, dos desaforos e desafios que precisa lidar, o foco dela é contar histórias: histórias que inspiram, que acolhem, que dão medo, divertem ou fazem chorar. Todo mundo tem uma história e o Não Inviabilize tem todas elas.

“Enquanto as pessoas estão gostando ou odiando, para mim está ótimo. Então se identificando de alguma forma. Procuro não pensar tanto nas outras coisas, nas consequências de tudo que vem junto. Meu foco é contar histórias.”

Ouça mais sobre a conversa de Déia Freitas com a Agência Mural:

Novidades do podcast

Após três anos de projeto, Déia conta que vai escrever dois livros: um sobre o “Picolé de limão” e outro com histórias do quadro “Luz acesa”.

Vai rolar também um programa de rádio, que está em negociação. “É o meu sonho, acessar os cobradores de ônibus, o pessoal que ouve rádio. Desde o começo sempre quis ter um programa de rádio, então, talvez se desdobre para isso.”

Para quem é ouvinte de carteirinha, saiba que novos quadros estão vindo aí. Um deles é sobre pessoas desaparecidas.

“Recebo muitas histórias de pessoas que estão procurando parentes. É uma história que não dá para você contar anonimamente porque você precisa mostrar a foto da pessoa que está desaparecida. Terminei de formatar esse quadro agora”, diz.

“E também terá um quadro que todo mundo pede, mas eu detesto [risos] que é de histórias de extraterrestres. Vai ter porque o povo gosta, meio que um ‘luz acesa’ de E.T.”

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Tamiris Gomes

Editora-assistente da Agência Mural. Fã de cinema, poesia e barulho de mar. Cofundadora e correspondente de Poá desde 2011

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