Ícone do site Agência Mural

Terreiros cancelam festa para caboclos no Dia da Independência da Bahia

Por: Brenda Gomes

Adroaldo Plático, zelador do Unzó Maiala,  dá continuidade ao legado da mãe no culto @Brenda Gomes/Agência

Mais uma vez, os festejos para celebrar o 2 de julho, dia da Independência da Bahia, serão cancelados ou adaptados em alguns terreiros nas periferias de Salvador, por conta da pandemia. 

No Unzó Maiala, terreiro localizado no bairro do Garcia, nas imediações do desfile principal da cidade, a festa iniciada no dia anterior foi suspensa. Para o tatá Adroaldo Plácido, 63, servidor público e zelador da casa, o momento exige precaução. 

“Lamentamos não poder celebrar este dia da forma que merece.  Mas é preciso ter cautela neste momento, candomblé é toque. Quem está lá em cima sabe mais que a gente, a justiça do céu é o socorro da Terra. Vamos continuar pedindo para que os caboclos inspirem os cientistas e em breve possamos celebrar todos juntos.”

A festa da Independência da Bahia é uma celebração cívica que acontece anualmente em memória da batalha que expulsou as tropas portuguesas do Brasil em 1823. Para celebrar a data, um cortejo sai pelas ruas da capital baiana levando a imagem dos caboclos. Durante o desfile também se apresentaram fanfarras, grupos políticos e sociais.

Essas imagens, do caboclo e da cabocla, são os destaques dos cortejos na data. Os símbolos criados para representar a luta do povo brasileiro, com o passar do tempo também se associaram às entidades cultuadas nas religiões de matriz africana, e o 2 de julho passou a ser também um dia para reverenciar as tradições indígenas dentro dos templos religiosos. Alguns grupos também se deslocam do interior para a capital, para participarem do cortejo. 

A jornalista e doutora em antropologia, Cleidiana Ramos, 46, explica que a devoção a essas divindades na Bahia estão atreladas principalmente ao candomblé da nação Angola, pois foram os primeiros povos que chegaram durante o período da escravização. 

“Quando os angolanos foram trazidos para a colônia eles fizeram esse contato com os povos da terra. Os dois povos perceberam que tinham práticas muito semelhantes, então se aproximaram, e possivelmente trocaram entre eles. O povo de Angola chega e se coloca como estrangeiro e a partir daí prestam referências aos donos da terra.”

Dessa forma, em vários terreiros de candomblé e umbanda, na capital e no interior do estado, as entidades indígenas são cultuadas com folhas, frutas e jurema, bebida fermentada preparada pelos sacerdotes.

Cleidiana explica que durante essas celebrações é possível perceber detalhes que  não fazem parte do culto tradicional africano, como é feito com os orixás (outra divindade cultuada dentro do candomblé). 

“Nos dias de festa de caboclo, as liturgias que são feitas em línguas africanas dão espaço ao português que os indígenas aprenderam durante o processo de catequização. Os barracões são enfeitados com bandeirolas e penas com as cores da bandeira do Brasil, sem falar no samba. O caboclo é um ser que quebra as hierarquias religiosas.”  

Plácido ressalta a importância da natureza nas celebrações e o terreiro é decorado com folhas, flores e frutas, um dia antes. “Para o povo de santo é uma vitória a preservação do culto aos caboclos, pois para nós, são eles que nos dão uma cura imediata. São entidades que conhecem a natureza e são capazes de indicar a cura, principalmente em tempos como estes. Caboclo pratica a caridade em qualquer momento e a qualquer hora”, afirma.

Apesar da preservação da devoção, Plácido lamenta a falta de áreas verdes dentro da cidade, que atribui ao processo de urbanização. “Caboclo e orixá são seres da natureza. Sem folha não há vida, e não há cura. A gente poderia servir melhor a comunidade, muitas vezes, se tivéssemos ainda espaços preservados. A urbanização e falta de preservação de áreas verdes dificultam em parte o nosso culto.”

Diante do mesmo contexto de crise sanitária, o Nzo Onimboyá, localizado na região do Engenho Velho da Federação, também precisou pausar as atividades religiosas abertas à comunidade. Para a empresária Alice Pinto, 34, é hora de reflexões e atenção.

“Sinto a necessidade de estar no terreiro, preciso sentir a energia do lugar, mas é necessário entender o momento que estamos vivendo. Por mais que os decretos municipais liberem cultos menores, a nossa religião é cultuada de outra forma”, diz Aline. 

“Precisamos entender que vai passar, e aproveitar para olhar para dentro e cultuar essa energia a partir das nossas individualidades”, pondera. 

A casa, que leva o nome de um caboclo, no dia dois de julho oferecia uma feijoada para a comunidade, tradição que iniciou com o tio de Alice, conhecido como Raimundinho, que com amigos chegava a distribuir cinquenta quilos do prato para a comunidade. 

“É uma lembrança muito viva da minha infância. Recordo que ele utilizava o dia para homenagear de forma especial o caboclo Massaranduba. Mas, por conta da violência e outras questões, ele acabou parando. E agora estamos tentando retomar. São momentos que acolhem toda a comunidade”, relembra Aline. 

Tanto os desfiles do dois de julho, quanto a celebração religiosa sempre fizeram parte também da história da funcionária pública Ninfa Marina Borges, 69, que sempre marca presença no desfile da independência. 

VEJA TAMBÉM:
Devotos programam novas formas para homenagear Iemanjá por conta da pandemia
Empresas investem em negócios inspirados nas religiões afro-brasileiras nas periferias de Salvador

“Sempre participei do desfile do 2 de julho. É um momento muito importante para nós baianos. É uma verdadeira homenagem àqueles que lutaram pela independência. Eu gosto de ver as tropas, as escolas e principalmente o pessoal que vem do interior para desfilar”, diz Ninfa.

Se não fosse a pandemia, a agenda de Ninfa e de alguns baianos adeptos ou simpatizantes do candomblé teriam programação já determinada. “É tradição da minha família louvar os caboclos. Então vejo o desfile na rua e depois vou para o terreiro olhar as entidades dançarem e fazerem a festa também. Mais uma vez ficaremos sem festas esse ano, o que é uma pena, pois parece que está faltando algo”, conta. 

Apesar do debate no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a permissão para missas e cultos presenciais em meio a pandemia do novo coronavírus, na Bahia o funcionamento de templos religiosos já está autorizado, desde que “respeitados os protocolos sanitários estabelecidos, especialmente o distanciamento social adequado e o uso de máscaras”. 

Em março do ano passado, ainda no começo da pandemia, o governo e a prefeitura de Salvador chegaram a limitar a 50 pessoas o público para eventos e reuniões religiosas. Em julho de 2020, ao anunciar a primeira fase da reabertura, a gestão municipal determinou que a ocupação seria de até 50 pessoas por culto ou 20% da capacidade máxima do salão de celebração, obedecido o número que fosse maior. Em outubro, esse limite foi ampliado para 200 pessoas por culto ou 30% da capacidade do espaço – novamente o que fosse maior.

LIVE PARA HOMENAGENS

O grupo Irmãos no Couro, do bairro do Engenho Velho da Federação @Divulgação/Irmãos no Couro

O grupo Irmãos no Couro, do bairro do Engenho Velho da Federação, que nasceu a partir de oficinas de toques percussivos e cânticos sagrados ministradas por músicos de terreiros da região, realizará pelo segundo ano consecutivo uma live para homenagear os caboclos na data comemorativa.  

Para Júnior Pakapym, 33, artista gráfico e um dos integrantes do grupo, a transmissão virtual é uma forma cuidadosa de levar o sagrado para mais perto das pessoas de candomblé e simpatizantes. 

“Neste tempo pandêmico em que a gente não pode louvar essas divindades dentro dos terreiros, é uma forma de compartilhar algumas histórias, toques e cantigas.  Para a gente não é interessante ainda que aconteça presencialmente, já que ainda não vacinamos ainda as nossas comunidades inteiras”, diz Pakapym. 

A live terá transmissão ao vivo a partir das 17h, no Youtube e Instagram (@irmaosnocouro) e será realizada no hub Casa Mar, espaço afrocentrado de inovação, cultura, sustentabilidade e empreendedorismo. 

Pakapym explica que poder louvar esses guias espirituais é uma forma de preservar a herança indígena do povo brasileiro. “O caboclo permite que a gente possa cultua-lo dentro do terreiro onde a maioria dos elementos são africanos, isso para a gente é um presente. Eles nos permitem louvar a nossa ancestralidade indígena” .

Sair da versão mobile