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Agência de Jornalismo das periferias

Por Paulo Talarico | 12.02.2021

Reportagem: Ana Beatriz Felicio, Eduardo Silva e Lucas Veloso | Artes: Magno Borges

Edição: Eduardo Silva e Vagner de Alencar

Publicado em 12.02.2021 | 16:45 | Alterado em 12.02.2021| 18:23

RESUMO

Mesmo em meio à pandemia de Covid-19, festas e aglomerações frequentadas por adolescentes têm ocorrido em bairros periféricos e centrais de São Paulo. Se, por um lado, os jovens das periferias são criticados, por outro, rebatem com outros problemas: “no busão cheio eu não vou pegar Covid-19, mas no baile, sim?”

Tempo de leitura: 8 min(s)
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Depois das 22h de sábado, um movimento de jovens começa a ser visto em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Os pequenos grupos se reúnem em busca de alguma festa. 

A situação era comum antes da pandemia de Covid-19, com aglomerações que duravam a noite inteira, mas, com o vírus, as orientações médicas passaram a ser o distanciamento social. Porém, para muitos, as festas continuam.

Um dos jovens que admite sair de casa é o estagiário em engenharia J.C. [nome ocultado a pedido do entrevistado], 22. Ele conta que os rolês servem para ‘esfriar a cabeça’ depois de uma semana cheia de coisas. 

“Aqui na periferia a gente não tem nada o que fazer sempre. Ficar só em casa é ruim porque não tem muito espaço e fica todo mundo junto. Quando eu saio, me divirto e dou uma respirada”, diz.

O estagiário explica que, nos primeiros três meses de pandemia, seguiu as recomendações de isolamento até onde deu. Mas, depois disso, cansou.

Ele comenta que ‘a vida não pode parar’ e que as pessoas ricas se isolam porque têm condições de ficar em espaços com opções de lazer. “E a gente aqui? Se isola e fica num cômodo com a família toda. Acho que é mancada com os pobres”.

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Festas têm ocorrido tanto nas periferias quanto em bairros ricos @Magno Borges/Agência Mural

As aglomerações que ele e outras dezenas de jovens fazem nas ruas do bairro vão contra as principais recomendações de segurança e combate à Covid-19. Sem o uso de máscaras e o distanciamento social, o ambiente se torna propício para o contágio do coronavírus. A doença já infectou mais 565 mil paulistanos até o fim de janeiro, segundo dados da Prefeitura e matou ao menos 30 mil na Grande São Paulo.

A fiscalização de estabelecimentos que estejam descumprindo as fases da quarentena é realizada pela Secretaria Municipal das Subprefeituras com o apoio da GCM. Até 22 de janeiro, foram interditados 1.429 estabelecimentos em toda a cidade. Destes, 70% são bares, restaurantes, lanchonetes e cafeterias, baladas e danceterias.

Na Subprefeitura de Guaianases, 75 locais foram interditados no mesmo período. Em relação às festas, a pasta diz que a atribuição legal para a fiscalização é da polícia.

Mas por que seguir indo às baladas mesmo com a pandemia? Assim como J.C., outros jovens ouvidos pela Agência Mural relataram os motivos que vão desde já estarem expostos durante a semana no transporte público quanto aqueles que não acreditam nos perigos do coronavírus.

O BAILE MAIS ESPERADO

O operador de telemarketing F.S., 21, frequenta anualmente um “baile funk de natal” que ocorre perto de onde mora, no Itaim Paulista, também na zona leste da capital. No natal de 2020, não foi diferente. Na madrugada do dia 25 de dezembro, centenas de jovens lotaram uma rua do bairro com carros de som.

“É o baile mais esperado do ano. E, principalmente no ano passado em que a gente não saiu o ano inteiro, estava todo mundo muito ansioso por ele”, conta. “Tiveram até grupos no WhatsApp pra gente combinar de ir. E várias pessoas de outras quebradas vieram para o baile também.”

O jovem diz que começou a sair mais de casa após perceber um clima de normalidade no bairro. Além disso, sua família também passou a sair e a ter contato com outras pessoas – o que o deixou ‘mais confortável’.

“No começo da pandemia, quando a gente começou a trabalhar e estudar em casa, eu tinha muito medo. Só que, com o passar do tempo, não houve relatos de moradores aqui da quebrada que tiveram Covid, nem suspeita, então as pessoas começaram a sair mais. Eu via muita gente na rua e isso me deixou mais confortável pra sair também”.

O Itaim Paulista, que tem 233 mil habitantes em uma área de 12 km², teve 7.891 casos leves e 1.313 casos graves da doença até 2 de fevereiro (aproximadamente 3,9% da população). O Hospital Geral do Itaim Paulista, de competência do governo estadual, atualmente opera com 26 leitos destinados ao tratamento a pacientes com Covid-19, sendo 10 de UTI e 16 de enfermaria.

Nesta sexta-feira (12), a taxa de ocupação é de 30% na Terapia Intensiva e 44% nos leitos clínicos. “Nos últimos três meses, a unidade apresentou aumento na demanda de internações de 35%: em novembro, foram 89 internações, número que saltou para 121 em janeiro”, afirma em nota a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

DESINFORMAÇÃO E DIFICULDADE DE ISOLAMENTO

Para Tiaraju Pablo D’Andrea, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), campus zona leste, diversos motivos podem fazer com que uma parcela dos moradores das quebradas, principalmente os mais jovens, estejam normalizando a pandemia. 

“Por um lado, tem uma desinformação generalizada, que é histórica nas periferias, além de uma desinformação levada a cabo pelo governo desse país que acabou confundindo ainda mais as periferias”, analisa D’Andrea, que desenvolve estudos voltados para a análise das periferias.

Além disso, ele avalia que a crise enfrentada pelo país nos últimos anos, agravada com a pandemia, tem tornado as periferias territórios deprimidos, nos quais há dificuldade de se acreditar nas instituições e também projetar o futuro. 

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Tiaraju aponta a desinformação como um dos fatores que afetou a prevenção contra a Covid-19 nas periferias @Arquivo Pessoal

“A juventude das periferias não tem muito projeto de futuro por conta de um país que não possibilita planejamentos a longo prazo. A juventude quer viver o agora, quer viver o presente e ela não vai deixar de viver por conta da ameaça da Covid-19. É triste, mas é real”.

O professor também destaca as principais dificuldades que fizeram com que fosse mais difícil para os moradores das periferias manterem o isolamento social. Questões de infraestrutura dos bairros, como casas muito próximas umas das outras, ruas estreitas e muitas pessoas vivendo juntas na mesma casa são algumas delas.

Outra questão foi, e ainda é, a necessidade de continuar trabalhando fora como única forma de sobrevivência.

“Nos bairros de classe média, a gente viu todo tipo de decisão para cuidar dessa população logo no começo da pandemia: fecharam universidades, academias e shoppings. Porém, moradoras e moradores das periferias estavam de forma obrigatória se aglomerando no transporte público”.

AGLOMERAÇÃO NO TRABALHO x NO LAZER

Se, por um lado, as aglomerações nas periferias são criticadas, por outro, os frequentadores rebatem com outros problemas. A secretária C.S., 29, mora em Guaianases e trabalha na avenida Paulista, no centro da capital. 

Todos os dias ela sai de casa por volta das 7h, rumo ao trabalho, e diz que não viu mudanças no transporte público. “Todo dia é cheio. Basta você pegar um trem ou um busão. O que mudou?”, questiona.

Para ela, antes de exigir que os jovens não se reunissem, o poder público deveria evitar aglomerações nas lotações durante a pandemia. “Os caras vêm me falar pra ir para casa para ter proteção do vírus, certo? Mas de segunda a sábado, eu estou exposta à Covid-19 porque tenho que sair pra trabalhar”, comenta. “Quer dizer que no busão cheio eu não vou pegar, mas no baile, sim?”

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Moradores relatam que já vivem expostos no transporte público @Magno Borges/Agência Mural

Segundo a SPTrans, a frota de ônibus circulando nas ruas da capital paulista está em 88,25%, totalizando 11.308 veículos. A demanda de passageiros está em 62% em comparação ao mesmo período do ano passado.

Em nota, a pasta informa que manteve a frota de ônibus operando em níveis acima da demanda apresentada durante a quarentena e que, nas regiões mais afastadas do centro, a operação em dias úteis conta com 93,34% da frota de veículos em relação ao período anterior à pandemia.

“Cabe esclarecer que o inquérito sorológico realizado pela Prefeitura de São Paulo mostra que a proporção de pessoas infectadas no transporte público é a mesma de quem não o utiliza. Por isso, não há relação entre usar o transporte público e ser infectado”, afirma a SPTrans.

ALTERNATIVA AO DESEMPREGO

As aglomerações não se restringem apenas aos bairros periféricos da cidade. O DJ e morador de Guaianases T.F., 31, trabalha aos fins de semana em festas de música eletrônica que ocorrem em bares de diferentes regiões, inclusive no centro de São Paulo. Ele toca uma vez por semana e, quinzenalmente, frequenta os mesmos locais como cliente.

“Por ser um bar, o espaço é menor, porém reúne algumas dezenas de pessoas. A maioria delas não usa máscara, apenas para se locomover no espaço, mas não é regra”, comenta. “Também acabam criando uma ‘pista de dança’ onde deveriam existir apenas mesas. Em alguns momentos, nem parece que estamos praticando o distanciamento.”

O DJ, que estava cumprindo o isolamento em casa desde o começo da pandemia, voltou a trabalhar em setembro do ano passado e, consequentemente, a frequentar esses espaços após o período de flexibilização da quarentena, permitido pelo governo estadual. Mas outro ponto foi crucial para a decisão: a falta de renda.

“Assim que começou a quarentena, eu fui um dos que perdeu o emprego CLT. Infelizmente começou a doer no bolso, principalmente por não ter um suporte do governo para o setor de eventos. Eu fiquei sem sair até meados de setembro e voltei a fazer alguns jobs após o fim do seguro-desemprego, que recebia até então”, conta.

“Esse foi um dos motivos cruciais para voltar a tocar aqui e ali. Era preciso gerar renda de alguma forma”.

Segundo dados do Seade e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 351 mil pessoas perderam o emprego no estado de São Paulo entre o segundo e o terceiro trimestre de 2020. O período compreende os meses de abril a setembro.

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CHOQUE DE REALIDADE

O barbeiro M.G., 21, parou de frequentar aglomerações por receio de infectar algum membro da família. Ele mora com os pais e a irmã mais nova, no Itaim Paulista, e divide o quintal com uma tia gestante. “Depois de um tempo saindo, eu tomei um choque de realidade e pensei: ‘e se eu for assintomático e levar o vírus pra casa?‘”, conta.

Antes da decisão, porém, ele esteve em um show que ocorreu no mês de dezembro em uma balada no bairro. “Não valeu a pena porque estava muito lotado, você não conseguia andar direito e ninguém estava usando máscara”, diz o jovem, que também frequentava lounges e tabacarias na região.

O barbeiro, que também tem saído de casa durante a semana para trabalhar, aponta que um dos motivos para que aglomerações estejam ocorrendo é a descrença da população com o poder público no combate ao coronavírus.

“Muitas das coisas se tornaram mais um embate político do que uma preocupação com a gente. Acho que muitas coisas eles escondiam e, com o tempo, a cidade foi perdendo o medo ao ver as marmeladas que o governo estava fazendo.”

Ele cita, como exemplo, a viagem que o governador de São Paulo João Doria (PSDB) fez a Miami, nos Estados Unidos, em dezembro, após ter colocado o estado na fase vermelha do Plano São Paulo. A fase é a mais restritiva da quarentena e só permite o funcionamento de serviços e atividades essenciais à população. O governador pediu desculpas, posteriormente.

MORTES POR COVID-19 NAS PERIFERIAS

A preocupação com as aglomerações continua, pois os casos de Covid-19 seguem em alta. Desde o início da pandemia, as periferias de São Paulo foram as regiões mais afetadas por casos e óbitos causados pela doença, principalmente bairros com maioria da população negra.

Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, até o dia 4 de fevereiro, os distritos com mais mortes por coronavírus (confirmadas e suspeitas) são Sapopemba (725 óbitos), na zona leste, Brasilândia (586), na zona norte, Grajaú (560), Cidade Ademar (527) e Jardim São Luís (521), na zona sul.

Além disso, a ocupação dos leitos hospitalares chegou a 70% nas últimas semanas. Ou seja, pode faltar vaga se os casos continuarem aumentando.

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Paulo Talarico

Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.

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