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Pelas linhas de Dona Bel, me tornei jornalista

"Enquanto suas linhas criavam, consertavam peças e alinhavam os sorrisos das clientes, eu me formava jornalista e traçava as minhas próprias linhas"

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Arquivo pessoal

Por: Daniel Santana

Crônica

Publicado em 10.05.2024 | 12:26 | Alterado em 11.05.2024 | 0:38

Tempo de leitura: 4 min(s)

“Bença, mãe! Bom dia!” É assim que de domingo a domingo começo mais uma jornada. Nenhum amanhecer seria normal se não viesse acompanhado da bênção de Dona Bel, o beijo na mão e o pedido para que Deus ilumine meus caminhos.

Quem sai das periferias sabe o que a proteção de uma mãe representa no nosso cotidiano. Naquele momento, os possíveis problemas se esvaem e a confiança em dias melhores toma conta dos nossos passos.

Minha mãe sempre foi uma mulher de fé, e acredito que ao longo do processo de escrita desta crônica, mais uma vez, a oração dela se fez presente, pois enfrentei inúmeros bloqueios ao tentar resumir a história e a importância dela em minha vida e carreira.

O pequeno terço colocado na máquina de costura mostra a importância da fé para Dona Bel @Arquivo pessoal

Dona Bel, ou melhor, Isabel Alves Santana, nasceu em julho de 1969, na cidade de Governador Mangabeira, no interior da Bahia. Na infância, cercada pelos outros 11 irmãos, passou por diversas necessidades. Meus avós, Maria Bernadete e Manoel, batalhavam na roça para garantir as condições mínimas de vida da família. Os filhos também ajudavam nas plantações de laranja, feijão, milho, aravam a terra, capinavam o solo, torravam farinha.

Com a demanda, estudar não era uma prioridade. A vontade de conquistar algo melhor a fez partir rumo ao Rio de Janeiro com uma prima da minha avó.

Após um ano na cidade maravilhosa, onde realizou um curso de corte e costura, mudou-se para São Paulo, para morar com a minha tia Marilene, e, só então, começou a estudar. Ao conciliar estudos e trabalho, surgiram as primeiras oportunidades como costureira. Evoluiu com as chances na área e conseguiu uma máquina emprestada para realizar variados tipos de consertos.

Ao conhecer o meu pai, Antonio, e se casar com ele, os dois adquiriram um ponto no Jardim São Luís, na zona sul da cidade, bairro onde minha família paterna mora há mais de 50 anos. Além de montarem uma papelaria, minha mãe também passou a realizar consertos de roupas, graças ao conhecimento adquirido ao longo dos anos.

Dona Bel e eu, no último Carnaval no Sambódromo do Anhembi

Dona Bel, grávida, com o companheiro Antonio @Arquivo pessoal

Primeiro Dia das Mães de Dona Bel. As flores foram um presente do meu pai, Antonio @Arquivo pessoal

Imagem do meu primeiro aniversário com os meus pais, com um bolo clássico das festas de antigamente @Arquivo pessoal

Aniversário de quatro anos do filho. Todos os anos, ela faz um bolo @Arquivo pessoal

A entrada da loja atualmente, localizada no 142C da Rua Inácio Lima @Arquivo pessoal

Foto tirada na loja em 2008 @Arquivo pessoal

Essa jornada a tornou uma das primeiras costureiras a trabalhar em uma loja, conquistando clientes não só no São Luís, mas também nos bairros vizinhos, como Jardim Ibirapuera, Promorar, Capão, Parque Santo Antônio e Vila das Belezas.

Mais de 600 pessoas já levaram roupas para serem consertadas por ela, desde pequenos ajustes até a fantasia de escola de samba dos meus primos, gerando boas memórias.

Como o caso da Bete, mãe de uma noiva que sofreu um percalço com um zíper quebrado do vestido e levou a peça para arrumar com todos os convidados esperando na igreja. Dona Bel relembra o baita sufoco da cliente e a satisfação de contribuir para o final feliz da festa.

Além de uma experiente costureira, ela domina a arte de cozinhar. Nada supera o sorvete de creme com chocolate de Dona Bel. É imbatível! Aos domingos, dia da folga na loja, ela aproveita para ir à igreja e depois passarmos um tempo juntos; é quando somos geralmente agraciados com um bolinho com café no fim de tarde. A mesa também é nosso ponto de encontro na casa para conversar, rir, fofocar e apreciá-la.

Histórias de Dona Bel

Entre momentos marcantes, Dona Bel destaca um vivido às quatro da tarde de 9 de março de 2000, uma quinta-feira: o meu nascimento. Para ela, o dia mais importante. Ali, iniciamos as nossas histórias.

Uma engraçada que ela sempre lembra foi quando eu tinha seis anos e ao cortar meu cabelo, passou a “zero” por engano. Acabou raspando por completo. Ela ria e eu chorava jurando que ia fazer igual ela fez comigo, o que a fez rir ainda mais. A vida foi tão caprichosa que hoje ela me ajuda a cuidar do meu cabelo com um carinho enorme. Ela é uma das poucas pessoas que tem passe livre para mexer na minha “coroa de preto”.

Outro causo bom foi quando em um aniversário dela, no dia 8 de julho, eu, no auge dos meus sete anos de idade, a “presenteei” com um cofrinho que vendia lá na loja. Falei pra ela me devolver o presente quando acabasse de enchê-lo com moedas. Interesseiro e esperto demais, né? (risos)

Mulher de muita fé, como já disse, ela depositou mesmo foi crença no conhecimento nesses 54 anos de batalhas. Essa confiança, aliada a muito esforço, ajudou a torná-la uma pessoa super conhecida no bairro (falo que ela deveria ser política). Dona Bel, Isabel, Tia Bel, a costureira, a Bel da lojinha, a mãe do Daniel, ou simplesmente, Bel, pros mais próximos.

Além do reconhecimento, perseverança e determinação também resultaram em outros bens e conquistas. Com meu pai comprou um terreno, levantou a casa onde moramos, adquiriu um carro, ajudou outras pessoas e me auxiliou a pagar a minha faculdade.

Cada barra de calça, cada zíper colocado, cada roupa consertada ao longo desses anos, foram importantes para dar sentido ao pontilhado da minha vida.

“A vida é uma grande costura. Um dia você tá mal, no outro você tá bem. Juntando cada pedaço, fazendo cada emenda, a gente evolui, cresce, tal qual quando fazemos uma roupa”, me confidenciou.

E enquanto suas linhas criavam, consertavam peças e alinhavam os sorrisos das clientes, eu me formava jornalista e traçava as minhas próprias linhas. No barulho do zig zag das suas máquinas de costura ou do meu teclado costuramos muitas e boas histórias.

É… sou abençoado! E por isso mesmo não deixo de agradecer e pedir: Bença, Mãe. obrigado por tanto!”

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Daniel Santana

Jornalista, apaixonado por livros, samba e carnaval. Corintiano, vivo o futebol de domingo a domingo. Adoro contar histórias através do jornalismo.

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