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Arquivo Pessoal

Por: Gabriela Carvalho

Notícia

Publicado em 10.03.2023 | 14:45 | Alterado em 14.03.2023 | 16:02

Tempo de leitura: 4 min(s)

Victória Dandara Amorim, 24, cresceu em Itaquera, na zona leste de São Paulo. Em fevereiro deste ano, ela foi a primeira travesti a colar grau na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo São Francisco, localizado no centro histórico da cidade.

Por ali, ela também fez história. “Até tiveram pessoas que transacionaram depois, mas eu fui a primeira travesti a entrar e me formar [na instituição]. E não falo isso por orgulho, mas como forma de denúncia.”

Segundo ela, existem diversas barreiras para que corpos trans e travestis ocupem esses espaços. “É mais fácil alguém esconder quem é ou esperar se formar para transicionar”, comenta ela, que ingressou no curso já tendo passado pela transição.

Victória Dandara realizou o juramento em sua colação de grau em fevereiro deste ano @Arquivo Pessoal

E durante os anos da graduação, a advogada conta que reivindicou políticas, espaços e que a faculdade a enxergasse.“Tinha poucas referências de mulheres travestis que entravam no ensino superior. E, na São Francisco, o ambiente não é receptivo”, diz.

“São 195 anos de uma faculdade muito tradicional, a própria arquitetura passa a mensagem de que não é para uma travesti estar ali. Demorou um tempo até eu mesma me enxergar nesse lugar”

Victória destaca o estigma sobre pessoas trans que vivem na região central. “As travestis que você encontra são as que ficam ao redor, em situação de rua, na prostituição. Você as encontra na Sé, na marginalização, não dentro da faculdade.”

É por isso que ao falar da conquista, ela reivindica que outras tenham as mesmas oportunidades, e que concluir o ensino superior não seja uma exceção.

“A gente precisa cobrar cotas trans, uma efetividade do nome social, políticas de permanência estudantil e de manutenção para que as pessoas de fato consigam estar ali”, ressalta.

Em um cenário em que 90% das mulheres trans estão na prostituição [dado da Antra, Associação Nacional de Travestis e Transexuais] e na marginalização, este é um ciclo exclusório.

Após 195 anos, Victória Dandara é a primeira travesti a se formar em direito na USP @Arquivo Pessoal

Efeito do acolhimento

Ao falar das barreiras para estar onde está hoje, é impossível não mencionar o preconceito. Victória Dandara iniciou a transição de gênero ainda durante o ensino médio e conta que, apesar das dificuldades, o apoio familiar foi fundamental.

O incentivo para seguir estudando e ingressar no ensino superior veio da mãe, Micheli Toth Rossi. “Ela dizia: ‘a gente é pobre, então não tem outro jeito, tem que estudar’”.

“Não fui eleita, não fui a escolhida, não sou a mais inteligente. Mas eu tive uma mãe que acreditou em mim, me apoiou e permitiu que isso fosse possível”

Aos 16 anos, Victória frequentava uma escola particular na zona sul, como bolsista. Embora fosse um lugar mais progressista, ainda assim era uma instituição católica. “Era uma coisa muito velada, o coordenador tentava ser progressista e tentou me acolher.”

“Não podia usar o banheiro, o nome social eu tinha que requerer para cada professor. Tinham professores e alunos que riam na minha cara. Não teve uma estrutura para lidar com o assunto”, desabafa.

“A gente é expulsa de casa, depois expulsa da escola… Porque se você já não tem moradia, como que você vai querer continuar em uma escola que te violenta, que te agride?”, questiona.

A história de Victória foi diferente justamente porque tinha o apoio da mãe em casa. “Não tendo casa, escola e família, você vai para a prostituição. É a história da vulnerabilidade social que a gente conhece. Então, se eu fugi desse ciclo é porque a minha mãe me acolheu.”

Direito e o reencontro com a própria história

Professora de filosofia em escola pública, Micheli, a mãe de Victória, voltou a trabalhar para criar os filhos após um divórcio, pois sofria violência doméstica.

A experiência no período do divórcio dos pais foi algo marcante para a advogada recém-formada. “Tinha por volta de dez anos e minha mãe estava se separando do meu progenitor. Queria que ela tivesse tido uma advogada que pudesse ajudá-la naquele momento”, relembra.

De acordo com Victória, a mãe dela passou por violências institucionais. “Minha família sofreu violência por parte de advogados. E isso me construiu uma imagem autoritária sobre a profissão, mas não deveria ser assim.”

A partir dessa vivência, despertou nela a vontade de atuar com algo social. “Comecei a cursar gestão pública, mas após participar de um congresso de lideranças na Rússia, em 2016, percebi que o direito me traria mais ferramentas de mudança.”

“Lá é um país muito transfóbico, sofri até ameaças de morte, mas fui mesmo assim, pois era importante estar lá.” Ela conta que, na época, se tivesse conhecimento jurídico, poderia ter ido mais tranquila, com algum resguardo. “O vice-cônsul disse que não era para eu ir pois poderia ser assassinada.”

Travestis como defensoras dos direitos humanos

Agora, sendo advogada formada por uma das faculdades de direito mais renomadas do país, Victória quer deixar seu legado e já atua com diversidade e inclusão – mas enfatiza que gênero e travestilidades não são suas únicas pautas.

Advogada quer trabalhar com direitos humanos e pretende abrir um escritório @Arquivo Pessoal

“Estou em vias de abrir meu escritório e acredito que meus atendimentos são potencializados por eu ser uma travesti”, diz. “Isso me faz ter outras vivências de mundo e percepções, um olhar mais acurado para algumas violências. Então, acho que essa é parte da minha missão, sabe?”

“Me vejo hoje como um sonho das mais velhas que vieram antes e penso nas futuras meninas que vão entrar naquele espaço [a faculdade de direito].”

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Gabriela Carvalho

Jornalista, comunicadora visual, mestra em Mídia e Tecnologia e pós-graduada em Processos Didático-Pedagógico para EaD. É correspondente do Jardim Marília desde 2019. Também é cantora de chuveiro, adora audiovisual e é louca por viagens.

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