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Agência de Jornalismo das periferias

Arquivo Pessoal

Por: Ira Romão

Crônica

Publicado em 10.05.2020 | 14:57 | Alterado em 22.11.2021 | 21:51

Tempo de leitura: 4 min(s)

Há quem defenda que mãe é um ser divino. Talvez por isso o “título” mães de anjos se encaixe tão bem para nós que sofremos pela perda de um filho no início de sua vida, seja durante o período gestacional ou neonatal.

Sempre acreditei que a definição de “ser mãe” está muito acima do entendimento humano. E tenho vivido isso, de modo intensivo e cada vez mais, desde a partida da minha filha, Heloísa, em outubro do ano passado, 28 dias após seu nascimento.

Junto ao corpo dela sepultei sonhos, planos e metade de mim. Apesar disso, o amor que ela trouxe para minha vida segue transbordando e a cada novo amanhecer, ressurge mais vívido no meu coração.

Nunca esquecerei a euforia que tomou conta de mim, quando descobri que estava grávida. Um misto de alegria e pânico, pois não havia sido planejado e minha gestação já estava bem avançada. Por mais surreal que tenha sido como tudo aconteceu, o importante é que naquele instante, me tornei mãe.

Quanto carinho recebemos dos familiares e amigos, que ficaram encantados com a notícia e até pensaram que era pegadinha. Um dia éramos dois, meu marido e eu. No outro, três, pois somou-se a nós, nosso pacotinho de amor (como a chamávamos). A partir daí tudo passou a ser pensado, organizado e feito para e por ela.

Ira conta que após perder a filha conheceu outras mães de anjos @Arquivo Pessoal

Com seu nascimento, tudo se intensificou. O amor transcendeu. Era evidente a felicidade que invadia meu coração toda vez que olhava para ela. Era mágico quando ela fixava seu olhar no meu e apertava com toda a força meu dedo indicador. Tão pequena e tão madura para o tempo de vida.

São essas lembranças que me fazem seguir.

PERDA

Perder um filho, independente do período, é uma dor que paralisa e os questionamentos nos mutilam por dentro. Quando isso ocorre num período tão prematuro, a dor, do que não foi vivido, nos sufoca ao mesmo tempo que nos esvazia.

No entanto, a morte de um filho não é o fim da maternidade. Não importa quanto tempo este filho permaneceu com sua mãe.

Mesmo tendo que seguir sem meu pacotinho de amor, serei eternamente grata por ter sido escolhida para ser sua mãe. Além do imenso orgulho que tenho da guerreira que ela foi. Uma pequenina que não só lutou bravamente pela própria vida, mas encantou e marcou a todos que a conheceram.

Compartilhar a história dela faz parte da minha missão como sua mãe, e assim, nos mantemos conectadas.

É inexplicável a conexão entre uma mãe e um filho. E é por isso que é tão difícil tentar explicar como é estar em uma maternidade para dar a luz, e depois disso, voltar para casa com os braços vazios.

Ao longo de sua breve vida, Heloísa viveu numa UTI (Unidade de Terapia Intensiva), lutando bravamente, – como tantas outras crianças que lá também estavam.

Ela transbordava amor e força. Foi o que nos fez, meu marido e eu, ter esperança e, assim, seguir sonhando, planejando, acreditando e torcendo para logo irmos pra casa. Mas isso nunca aconteceu.

Minha pequena e forte Helô falava pelo olhar. Foi assim, que entendi, que minha missão como mãe seria profundamente árdua e exigiria de mim força. Força essa, que não tenho, mas como mãe sigo buscando dia após dia.

MÃE DE ANJO

A passagem da minha pequena me permitiu conhecer um universo – das mães de anjos – que eu até via, mas não enxergava quão profundo era. Uma vez neste universo, os filhos gestados, jamais serão esquecidos por suas mães.

Realidade que comprovei, inesperadamente, durante o velório da minha filha. Naquele fatídico dia, duas conhecidas, em momentos distintos, ao me abraçarem, confidenciaram, em forma de sussurro, que entendiam o que eu estava sentindo porque haviam passado por perdas gestacionais décadas atrás. Uma delas, há cerca de 40 anos.

Ser mãe de anjo, além de muito doloroso, é amplamente desafiador, principalmente nos pequenos detalhes.

Ira perdeu a filha há sete meses @Arquivo Pessoal

O corpo de uma mulher que perde um filho durante a gestação ou logo após o parto demora para se dar conta que não existe mais uma criança que depende dela como mãe.

No meu caso, que fiz uma cesariana, passar pelo período puerpério, o popular resguardo, foi inevitável. Após o falecimento da minha filha, meu corpo, que ainda se recuperava da cesária, seguiu produzindo leite materno, até eu interromper com medicamento.

Houve também a permanência do sono leve e atento de mãe, sobretudo de primeira viagem, que desperta com qualquer ruído, sinal que meu corpo precisava de um tempo maior para resetar “o modo mãe”.

Ao longo destes sete meses de luto, conheci tantas outras histórias de mulheres que perderam filho durante a gestação e nos primeiros dias de vida. Algumas delas, bem próximas à mim. 

Um ponto comum nessas histórias, é que em algum momento do luto, essas mães tiveram suas dores, mesmo que inconscientemente ou inocentemente, ignoradas e anuladas. 

Frases como “logo você terá outro”; “não era o momento de você ser mãe”; “ainda bem que foi no comecinho”; “quando vocês irão tentar de novo?”; “não desista, você tem que ser mãe”; “o que você vai fazer com as coisas do bebê?”; entre outras, contribuem para desregular a montanha-russa de sentimentos que uma mãe enlutada vive.

Infelizmente, o luto por uma perda gestacional ou neonatal é praticamente invisível em nossa sociedade. É insistentemente silenciado, ignorado, anulado e varrido para os bastidores da vida social.

Para quem nunca viveu algo semelhante, pode parecer exagero. Mas o tratamento recebido por algumas mulheres em hospitais e maternidades também é exemplo do nosso luto não reconhecido, menos ainda respeitado. Imagine mulheres que perderam seus filhos sendo “cuidadas” na mesma ala daquelas cujo os partos foram bem-sucedidos.

É como se não tivéssemos direito de sentir essa dor. Nem de recordar a existência de nossos anjinhos, que só nos trouxeram coisas boas.

Neste dia das mães, a dor de não ter minha filha nos braços é amplamente intensificada, mas mesmo assim nada tira de mim a alegria de ser mãe de uma anjinha iluminada que será sempre lembrada, amada e que terá sua existência defendida com unhas e dentes.

Afinal, mãe é mãe e ponto.

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Ira Romão

Jornalista, fotojornalista e apresentadora de podcast. Atuou em comunicação corporativa. Já participou de diferentes projetos como repórter, fotógrafa, verificadora de notícias falsas e enganosas. Foi uma das apresentadoras do ‘Em Quarentena” e da série sobre mobilidade nas periferias. Ama ouvir histórias, dançar, karaokê e poledance. Correspondente de Perus desde 2018.

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