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Teatro nas periferias: a influência do território na produção de espetáculos

Cia de Teatro de Heliópolis, Estopô Balaio e Núcleo Pele: conheça quem faz a cena teatral nas bordas da capital

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Por: Priscila Pacheco

Notícia

Publicado em 18.05.2019 | 9:52 | Alterado em 06.06.2019 | 13:33

RESUMO

Cia de Teatro de Heliópolis, Estopô Balaio e Núcleo Pele: conheça quem faz a cena teatral nas bordas da capital paulista

Tempo de leitura: 6 min(s)

Em Heliópolis, o julgamento de um jovem negro movimenta a comunidade que aponta inocência. Nos trilhos do trem com destino ao jardim Romano, um áudio traz nos ouvidos dos passageiros a história da região e culmina com um ponto final: as chuvas e o alagamento. Do outro lado, no extremo sul, o corpo de uma pessoa morta é reanimado com um estilo musical: o funk.

Estas três histórias distintas são um retrato da cena teatral que explodiu nas periferias de São Paulo nos últimos anos. A Agência Mural conversou com integrantes de três grupos de teatro que nasceram e atuam nas regiões periféricas da capital.

Miguel, da Companhia de Teatro Heliópolis, João, do Estopô Balaio, e Aline, do Núcleo Pele, falam sobre a influência do território das produções e do tipo de teatro que apresentam. Também apontam os desafios de levar o público para acompanhar os espetáculos do bairro.

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Cena da peça (IN)JUSTIÇA, com uma representação do meio jurídico brasileiro (Caroline Ferreira/Divulgação)

AS MÚLTIPLAS VOZES DE HELIÓPOLIS

Miguel Rocha, 39, tinha 16 ou 17 anos de idade quando chegou a Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, localizada no distrito do Sacomã, zona sudeste. Veio de São Miguel do Fidalgo (PI) morar com o pai. Diretor de teatro e produtor cultural atualmente, Miguel começou a gostar da arte quando estava na escola ao ver uma apresentação. Foi o ponto de partida para fazer cursos e conhecer pessoas envolvidas com artes cênicas.

No ano 2000, com o apoio da UNAS (União de Núcleos e Associações de Moradores de Heliópolis e Região) e junto com outros moradores da comunidade, criou a Companhia de Teatro Heliópolis. Para Miguel, teatro é inquietação e provocação, além de ter um vínculo com o território.

O diretor diz que Heliópolis é como se fosse um canteiro onde pensam e tiram histórias que envolvem a cidade e o país inteiro, questões que abordam desigualdades, violência, superação, histórias de pessoas que vieram do nordeste e que construíram São Paulo. “O grande barato da arte é sempre tentar trazer os pequenos microcosmos que têm a ver com o todo”.

Um exemplo é (IN)JUSTIÇA, peça que está em cartaz desde janeiro e encerra a temporada neste domingo (19). O espetáculo é conduzido pela indagação “o que os veredictos não revelam?”, que provoca uma reflexão sobre o sistema jurídico brasileiro. No enredo, um adolescente negro atira e mata uma mulher sem querer, a arma disparou. Assim, surgem diversas questões sobre o que é justiça, seja ela praticada pelo judiciário ou a sentenciada pela sociedade.

(IN)JUSTIÇA parte de uma narrativa que de alguma forma é de Heliópolis, é do Grajaú, é da zona leste. São histórias que estamos contando, que estão perto da gente, por mais que tenham um lado ficcional”, comenta. “Temos uma busca estética que tenta dialogar com a cidade. Estamos falando das nossas questões que têm a ver com a periferia, mas que também queremos afetar o outro que não está lá [na periferia]”, completa.

O grupo tem 11 espetáculos teatrais no currículo e fica na Casa de Teatro Maria José de Carvalho, no Ipiranga, distrito vizinho de Heliópolis.

Segundo Miguel, a Companhia de Teatro constrói uma dramaturgia que provoca e inclui o público como coautor, pois o objetivo não é impor nenhum ponto de vista para a plateia. “Nós trabalhamos muito com a ideia de uma dramaturgia fragmentada, então o público vai construindo a sua narrativa. (IN)JUSTIÇA é mais contínua, mas outras eram mais fragmentadas”, explica.

A Companhia usa elementos relacionados ao afro-brasileiro, ao samba, ao funk e ao urbano. Fala sobre a periferia com o que chama de polifonia: o uso de múltiplas vozes. A propósito, Miguel chama a atenção para o fato de que há quem enxergue as periferias como algo derrotado.

“Esse olhar de que a periferia se resume a um barraco é equivocado. Tem, sim, pessoas muito pobres. Eu falo por Heliópolis. Mas tem o comércio que gera renda, tem gente com carro de última geração, com tênis de marca. A periferia é muito díspar”, diz.

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“A cidade dos rios invisíveis” começa na estação de trem do Brás e termina na beira do rio Tietê no Itaim paulista (Ramilla Souza/Divulgação)

AS ENCHENTES, O TREM E O NORDESTE

No Itaim Paulista, na zona leste, mais especificamente no bairro do Jardim Romano, está o grupo de teatro Estopô Balaio. Formado em 2011, principalmente por migrantes do Rio Grande do Norte, Estopô apresenta a peça “A cidade dos rios invisíveis” até 9 de junho.

O diretor de teatro e pedagogo João Junior, 40, chegou de Natal em 2010 e foi morar na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Todavia, começou a trabalhar em um CEU (Centro Educacional Unificado) no Jardim Romano. No bairro, viu muitos migrantes nordestinos, encontrou gente do Rio Grande do Norte, mas do interior.

Questionava-se que nordeste era aquele que existia dentro da capital paulista e observava as mudanças territoriais no trajeto da Barra Funda para o extremo leste. “Era a minha grande questão o território que nos separa e cria cidades dentro de uma mesma cidade”, comenta. Mudou-se para o Jardim Romano e lá morou por quatro anos.

Montou o Estopô Balaio com outros amigos artistas que vieram de Natal e com o envolvimento da comunidade. Os moradores, inclusive, fazem parte do elenco em algumas encenações. Os espetáculos a “Cidade dos rios invisíveis” e o “O que sobrou do rio”, que foi apresentado em 2013 e início de 2014, são exemplos dessa interação.

O Jardim Romano é um bairro às margens do rio Tietê e fica próximo das cidades de Itaquaquecetuba e Guarulhos, na Grande São Paulo. Marcou presença nos noticiários por ter ficado debaixo d’água por três meses após uma enchente em dezembro de 2009. Os moradores andavam com água suja alcançando o joelho ou até a cintura

A água é um elemento recorrente nas produções do Estopô Balaio. Além do nordeste e do trem. Afinal, a população depende da linha 12-safira da CPTM. “Todo esse percurso da cidade é pelo trem. É no trem que as pessoas convivem sem saber que convivem. É onde você entra com o corpo fatigado. A água vem das enchentes e porque a linha [do trem] está margeada pelo rio Tietê”, explica.

Para João, o teatro é uma ferramenta para a população avançar o olhar para a cidade. “Como o teatro pode deslocar o olhar da pessoa sobre a cidade? Como é para uma criança de Pinheiros se relacionar com as crianças do Jardim Romano?”, questiona.

“A cidade dos rios invisíveis” faz esta provocação. Já na terceira temporada, a peça finaliza a Trilogia das Águas, iniciada em 2012, que possui enredos criados a partir das histórias que envolvem alagamentos na região.

A encenação começa na estação Brás da CPTM, o público segue de trem para o Jardim Romano escutando um áudio de histórias dos bairros cortados pela linha 12 – safira, além de já verem algumas encenações do elenco. Por fim, percorrem o bairro, pois as cenas são apresentadas em diferentes pontos.

A história é inspirada no livro “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino, e relembra momentos dos três meses que o bairro passou alagado, a relação da sociedade com o rio, o papel do trem e a presença nordestina no território.

Estopô Balaio trabalha com foco no bairro e nas relações humanas. Diz João que teatro deve ser como um bem comum, quer ter a mesma potência de um pipoqueiro, aquele que as pessoas se aproximam sem esforço.

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Cena da peça “O pancadão, o baile segue?”, uma mãe reclama ao lado de um pastor que os filhos não conseguem dormir por causa do barulho do baile (Bárbara Terra/Divulgação)

O FUNK E O TEATRO NAS RUAS DO GRAJAÚ

A cenógrafa e atriz Aline Domingos de Oliveira, 23, começou a fazer teatro em 2013 por meio do Programa Vocacional, projeto da prefeitura de São Paulo que realiza formações artísticas. Moradora do Cantinho do Céu, localizado no distrito do Grajaú, zona sul, fazia as aulas no CEU Navegantes que fica perto de casa. Decidiu participar da atividade para perder a timidez.

Ao gostar do curso, convidou os amigos da igreja católica que frequentava. “Eu achei tão incrível que falei: Gente, tem teatro aqui no CEU Navegantes, aqui na quebrada. Bora fazer teatro. Aí o pessoal veio”, relembra.

Assim, nasceu o grupo Núcleo Pele. A primeira peça foi apresentada em 2015 pelas ruas do Grajaú e se chama “A pele do trabalho”. Para alcançar mais público, encenavam até perto da feira livre no horário no qual as pessoas costumavam sair das igrejas e ir fazer compras de domingo. Também entregavam panfletos. “Eu batia na casa das pessoas e falava: Gente, é só teatro, com licença. Eu só quero mostrar teatro para vocês. Vamos assistir teatro?”.

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Segundo Aline, fazer teatro de rua é um desafio. “É uma disputa grande, porque é o carro que está passando com som alto, a criança chorando, o bar tocando aquele forró. Porque periferia é movimento. As coisas acontecem”, explica.

“A pele do trabalho” falava do trabalhador e expunha as dificuldades do dia-a-dia, como andar no ônibus e trem lotados. Além disso, havia destaque para a jornada de trabalho dupla vivida por mulheres, a opressão e abuso que elas sofrem. “As pessoas diziam: Nossa, que legal. Nunca vi isso, fala da nossa vida”. “Era um público que trabalhava todo dia, que pegava trem, que cuidava da criança. Então as pessoas se identificavam muito”, completa.

Neste ano, o grupo apresentou o segundo espetáculo, mas desta vez em um espaço cultural chamado Terreiro do Útero, também no Grajaú.

A peça “O pancadão, o baile segue?” ficou em cartaz até o início de maio. O fio condutor do enredo era um baile funk que já durava três meses. Neste período, uma pessoa havia morrido, mas o corpo continuava em movimento, e os moradores precisavam decidir se o baile continuava ou não. As cenas eram realizadas em diferentes cômodos da casa e havia interação com o público. Aline foi uma das responsáveis pela cenografia, mas também atuava.

Aline defende que nas periferias há uma potência artística. “A periferia produz uma pluralidade de arte, cada um em um segmento, mas estamos produzindo”.

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Priscila Pacheco

Jornalista, cofundadora e correspondente do Grajaú desde 2015. Atualmente, é editora-adjunta. Curte viajar e ler. Ama gatos e gastronomia.

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