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Agência de Jornalismo das periferias

André Bueno

Por: Mariana Lima

Notícia

Publicado em 18.10.2023 | 12:58 | Alterado em 18.10.2023 | 12:58

Tempo de leitura: 6 min(s)

Quem precisa se deslocar por Parelheiros, extremo sul da capital paulista, não consegue deixar de passar por ela, a praça Júlio César de Campos. Dividindo as três vias principais da região, o espaço, que abriga a estátua da escritora e antiga moradora da região Carolina Maria de Jesus (1914-1977) , vem sendo ocupado por coletivos e artistas locais.

A movimentação, contudo, não é de agora. No início dos anos 2000, moradores já articulavam a cena cultural da região no mesmo local. Um deles é Fatel Barbosa, 65, cantora de forró pé de serra, produtora cultural e criadora da Casa Di Fatel, espaço de valorização da cultura nordestina na região.

“A praça foi por muito tempo o único espaço público que dava pra gente fazer eventos. Digo que ela é a ‘menina dos olhos de Parelheiros’ porque as festas que fazíamos ali eram lindas”, conta.

Cantora e produtora Cultural Fatel Barbosa se apresentando durante edição do SertãoPerifa na praça Júlio César de Campos @Acervo pessoal

Fatel, que na época trabalhava para a Subprefeitura de Parelheiros exercendo o papel de articuladora cultural, buscava incluir artistas locais nos grandes eventos que fechavam as ruas principais.

“Era uma oportunidade para que os moradores conhecessem seus artistas, e não fazia sentido eles [artistas] não terem espaço nas celebrações da própria região”, reforça.

Após deixar o trabalho de articuladora cultural na subprefeitura, em 2005, Fatel observou um apagamento quanto ao papel da praça, que não é mais palco dos grandes eventos, como o Aniversário de Parelheiros, e dos artistas locais.

“Vi muita gente dessa época deixar a cultura por conta das dificuldades, principalmente quem era da música e do teatro. Cultura é investimento. Sem isso, a gente se vira com o que dá, mas não vai pra frente”, argumenta. 

De acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, a Subprefeitura de Parelheiros gastou, até agosto deste ano, R$ 258,6 mil com programações culturais. O valor do Orçamento de 2023 se concentrou nas festividades dos aniversários de Parelheiros e Vargem Grande.

Neste cenário, coletivos e artistas locais resolveram retomar a ocupação da Praça Júlio César Campos. Sem outros espaços culturais acessíveis na região, o Coletivo Sarauê e o SertãoPerifa iniciaram em 2015 a proposta de agendas culturais no local.

Auê na praça

Parelheiros, assim como muitos distritos localizados nos extremos da cidade, é marcado pela baixa oferta de atividades culturais.

De acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, da Rede Nossa São Paulo, o distrito de Parelheiros tem 1,9% de equipamentos públicos culturais para atender uma população de 155,4 mil pessoas, enquanto o distrito República tem uma proporção de 14,5% para 61,9 mil habitantes.

“A vantagem da praça é que tem um ponto de ônibus bem do lado. A pessoa passa horas no transporte público e tá cansada, mas quando desse aqui acaba dando uma olhada pra ver o que está acontecendo”, conta Joziane Souza, 40, produtora cultural no Coletivo Sarauê e moradora de Parelheiros.

Joziane (centro) e Luara (direita) com a estátua que homenageia a escritora Carolina Maria de Jesus @Erivelton Camelo/Fuzuê Produções

É neste interesse espontâneo que os nove membros aproveitam para fidelizar o público, explicando o que é o sarau. “A gente sabe a importância de se sentir acolhido quando está num evento assim pela primeira vez. No começo era tudo meio improvisado. Não parecia que ia durar”, conta.

Apesar disso, o Sarauê continuou e aos poucos foi se estruturando e ampliando a programação a cada edição. Música e literatura foram se misturando, pontes com outros movimentos e artistas surgiram.

“Se tornou um espaço aberto de apresentação. Algumas pessoas passaram a vir com o propósito de vender e expor suas artes. É um movimento muito bom porque mostra como o sarau é algo diverso”, pontua Joziane.

O processo de retomada da Praça Júlio César de Campos vem engajando outros coletivos, como SertãoPerifa, que trabalha no resgate da memória nordestina sertaneja na região por meio da música. 

Público assistindo a apresentação musical de forró durante evento do SertãoPerifa @André Bueno

Os grupos já atuaram juntos, como no evento Sarauê do Sertão que ocorreu em agosto deste ano com direito a quadrilha, poesia e artistas convidados.

“Ainda existe essa visão de que a rua, principalmente à noite, é um lugar de ‘monstros’, da violência. Quando ocupamos a praça mostramos que existe vida ali, que pode ser um lugar de encontro, de promover arte”, observa Magno Duarte, 41, curador de programação do SertãoPerifa.

O coletivo realiza apresentações artísticas, oficinas de xilogravura e de mini estandartes e festivais tanto na praça como em outros locais da cidade, incluindo escolas, com o objetivo de difundir a cultura nordestina e destacar a produção de mulheres e artistas LGBTQIAPN+ neste meio.

Na região de Parelheiros, o coletivo mantém um estúdio popular para jovens artistas locais. “Acolhemos grupos iniciantes, do samba ao rap, porque eles não teriam outros espaços para ocupar no próprio território”, pontua. 

O SertãoPerifa também apoia outros movimentos na escrita de editais como o VAI I e II, o de Fomento às Periferias, e de linguagens específicas, como o de Fomento ao Forró, mantidos pela Secretaria Municipal de Cultura.

“Muitas vezes os coletivos sequer sabem que existem [os editais] e quando sabem não conseguem se inscrever por causa da linguagem, que costuma ser burocrática. A rede serve pra isso também. Um ajuda o outro”, explica Joziane.

Um por todos e todos por um

Os coletivos mantêm uma agenda para realizar os eventos na praça. O Sarauê vem ocupando a praça todo primeiro sábado a cada dois meses, começando no fim da tarde, enquanto o SertãoPerifa realiza seus festivais bimestralmente no local.

“Emprestamos equipamentos, caixa de som, tenda. Fazemos programações em conjunto porque sabemos que precisamos estar articulados”, conta Joziane.

A relação próxima foi fundamental quando o processo para liberar o uso da praça junto a Subprefeitura de Parelheiros mudou em junho de 2022 devido à uma instrução normativa da Secretaria Municipal das Subprefeituras.

Apresentação artística que ocorreu em uma das edições do Sarauê na Praça Júlio César de Campos @Erivelton Camelo/Fuzuê Produções

Antes bastava levar até a subprefeitura um ofício com as informações gerais do evento, como data e horário. Agora, os interessados precisam apresentar também um croqui da disposição do evento no local e descrição dos equipamentos com 30 dias de antecedência da data prevista para o evento.

O Sarauê, por exemplo, só descobriu sobre a necessidade da documentação faltando uma semana para edição de agosto daquele ano. “Fomos pegos de surpresa. O jeito foi falar com os parceiros do território e buscar outro local”, relembra a produtora cultural.

Na falta de um equipamento público, são os locais independentes mantidos por moradores da região que permitem as reuniões, ensaios, lançamentos, exibições de filmes e a realização de formações, como o Restaurante da Marlene e a própria Casa Di Fatel.

“Esses espaços independentes estão suprindo uma lacuna do poder público. É uma microestrutura para segurar as pontas”

Magno Duarte do SertãoPerifa

Apesar de alguns locais serem conhecidos há anos pela comunidade, o Mapa da Desigualdade de 2022 indica que não existe nenhum espaço cultural independente em Parelheiros. A cultura do improviso pode explicar a falta de registros oficiais.

“É um restaurante que vira uma sala de cinema, é o quintal do outro que vira um espaço de oficinas. Os equipamentos públicos do território de Parelheiros não dão todo o suporte que precisamos”, explica Joziane.

Para Luara Oliveira, 23, artista local e participante do Fórum de Cultura Parelheiros, a Casa de Cultura poderia suprir essa demanda. O equipamento fruto de 10 anos de reivindicação popular foi inaugurado em 2019, mas fechou para reforma após ficar aberto por menos de dois anos.

Luara durante participação no Saruê do Sertão em agosto deste ano @Fuzuê Produções

“Parece uma regressão. Não deu tempo nem da própria população se apropriar. É como se nunca tivesse existido”, pontua.

Luara é frequentadora do Sarauê e do SertãoPerifa e vê os impactos das ações culturais que os movimentos geram na região.

“Quando vi aquela ocupação da praça, me encantei. Nunca tinha imaginado aquele espaço com um lugar de arte até então”, relembra.

Foi após o contato com os grupos que Luara começou a querer ocupar os espaços públicos locais. Como artista, ela tentou fazer o lançamento de um livro do coletivo que participa no CEU CEI Parelheiros, mas não conseguiu devido às dificuldades em dialogar com a gestão do espaço. 

Parte da praça durante o Sarauê do Sertão, que ocorreu em agosto deste ano @Erivelton Camelo/Fuzuê Produções

“Eu sinto que artistas independentes não são bem-vistos por lá [CEU]. Há um olhar de preconceito. Aqui [Parelheiros] você tem obstáculos para acessar o pouco que se tem”, relata.

Para Joziane Souza, do Sarauê, a questão esbarra na representatividade em relação a quem ocupa os cargos de gerência nos equipamentos públicos periféricos.

“São pessoas de fora do território e que não entendem o quanto é legítimo que a comunidade se aproprie e frequente aquele espaço”, defende.

A preocupação agora é a disputa pela agenda da praça com os equipamentos públicos locais, que costumam levar atividades culturais para áreas externas esporadicamente.

“Se essa disputa ocorrer, a gente vai pra outra praça no território. Mas vamos continuar promovendo cultura em qualquer lugar”, reforça Joziane.

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Mariana Lima

Jornalista e roteirista. Coautora do livro-reportagem "A Voz Delas: a literatura periférica paulistana". Pode ser vista com frequência em bibliotecas públicas. Correspondente de Parelheiros desde 2021.

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